A Ruindade do Mundo




Publicada no:
Jornal do Cambuci; 
Página Cultural; 
TUDA;
Mundo Mundano
(Set/ out. 2012)
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poiado no batente da porta, vejo o eletricista arrumar a fiação do meu chuveiro. Gosto de ver especialistas realizando suas tarefas.

— Quem fez essa instalação aqui? — de repente ele pergunta.

— O João — eu digo.

O João é um faz-tudo que presta servicinhos pros moradores do prédio, um homem simples que mexe com elétrica, hidráulica, pinturas, rebocos e outras coisas. Só não chamei o João dessa vez porque não o encontrei; e esse, que agora está aí a trabalhar no meu chuveiro, localizei através de um cartão deixado na soleira da minha porta.

Assim que ele chegou pra arrumar o chuveiro, aproveitei e pedi um orçamento prévio para o conserto da torneira elétrica e uma geral na máquina de lavar roupas. Tinha, até agora, arrumado um bom cliente...

— Pois o João fez um serviço de preto aqui! — ele responde.

Sinto um choque ao ouvir isso. Um lado meu ainda quer supor que possa ter se tratado meramente do uso de uma expressão infeliz. Devolvo pra checar:

— Mas serviço ruim não tem a ver com a cor do homem, você não acha?

— Ah, tem sim! Preto quando não faz na entrada faz na saída!

Ouço aquilo com mais tristeza do que ira. Ele teve sorte. Se me pega uns 10 anos antes, possivelmente eu o tiraria de cima da escada na base do pescoção e o jogaria porta a fora com um pontapé na bunda. Mas não hoje. Outrora um jovem irascível, agora sou um homem de meia idade, com um espírito em franco processo de amansamento.

Fico a pensar no pobre do João, que calado faz seus bicos pelo bairro há tantos anos sem maldizer ninguém. Penso na minha filhinha, que é preta, assim como eu e a Vanessa, que ficamos todos pretos em casa depois da chegada dela. Penso em todos os meus amigos pretos e nos pretos que não conheço que estão por aí, gente que batalha a vida nesse mundão injusto que é o nosso país. E penso também em Jesus, o carpinteiro que era amigo de brancos, pretos, pobres, ladrões, doentes e prostitutas, e que ensinou que o amor do Pai cobre a todos. O mesmo Jesus que, inexplicavelmente, aparece comunicado no cartão do eletricista.

— Acabei — ele fala, descendo da escada — Vamos combinar os outros serviços do senhor pra semana que vem?

— Mudei de ideia — eu digo simplesmente, dando o dinheiro pra ele e conduzindo-o pra rua.

Que o Homem é uma flor seca, eu já sei. Mas gosto de pensar que, algum dia, a ruindade do mundo vai acabar. E gente desse tipo vai sim arrumar chuveiros. Lá no inferno.


Cesar Cruz
Setembro 2012





7 comentários:

Andre Whitaker disse...

Só por curiosidade: o João é preto?

CESAR CRUZ disse...

É moreno claro e nordestino, o que de certa forma o caracteriza como preto, no ponto de vista dos minuciosos avaliadores da raça dos outros.

Por falar em raça, pra mim há uma só raça: a raça humana.

abço!
Cesar

Anônimo disse...

É meu amigo César, e a luta continua não é mesmo? Essas cosias são de doer, dá vontade de dizer vai pra... p... que ...iu pra esse tipo de gente, mas estamos na mesma toada que Você, ultimamente tenho uma teoria comigo que ando pregando de maneira intensa, talvez seja aquelas coisas que depois dos quarenta a gente começa a adquirir e esta teoria é: se conforme nós vamos vivendo e com o passar dos anos não vamos adquirindo uma certa serenidade é porque não aprendemos a viver, pois a cinco ou dez anos atrás também faria coisas que provavelmente, e por sorte não aconteceu, colocaria tudo a perder quem sabe até mesmo minha vida. Mas é por essa e outras imbecilidades humanas, e isso já disse aqui, é que apelidei meu filho de NEGÃO (em seu segundo mês de vida), tendo Ele o tom de pele da cor de um papel BRANCO. Sei, sei, é uma atitude infantil, imatura, desnecessária, até agressiva, mas é uma forma de tirar uma casquinha desses imbecis que saem por aí apregoando um dos maiores absurdos humanos, a m...da desse preconceito. E aqui termino como comecei... e a luta continua... Muito obrigado por isso.

abraços a todos
xara – ipiranga – sp – sp

“Mais fácil dividir o átomo que acabar com o preconceito humano” - Ainstein

Anônimo disse...

Olá Cesar,

Texto importante! A nossa sociedade tem muito a repensar!
Concordo: só existe uma raça, a humana!
Parabéns e abraços!!

Paulo Irineu

Marcela Rossi disse...



Achei linda a parte que vc diz que vc e a Vanessa ficaram pretos depois da chegada da Michele. Também me sinto mais preta depois de ter participado, ainda que um pouquinho, da chegada da pretinha mais linda do mundo pra vcs.  Imagino que deve doer muito ouvir uma coisa dessas que cabe para um filho nosso. Deixa esse idiota pra lá, é um infeliz, não sabe nada da vida.

Bjo

Henrique Lanes disse...

Césinha

O que me chamou a atenção foi essa incrível dualidade do homem religioso, que no cartão do trabalho fala de Jesus e na vida real pratica coisas dignas de um anti-cristo. Conheço outros assim.

abços,
HL

Renata Viana disse...

Oi Cesar,

Li, e é estranho o que vou escrever: gostei e não gostei!

Receba um abraço desta amiga tb preta, que ama vcs.

Renata