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Comecei a usar computador há menos de três meses. Daniel veio passar o natal com a gente e trouxe de presente. Antes disso eu nunca tinha tocado em um. Mesmo assim tenho que ver a cara de má vontade dele, como se o computador fosse só dele. Ganhamos, portanto foi um presente para nós dois. Os jovens hoje usam as coisas e já logo trocam por novas e melhores. Mas isso sempre foi assim nesta minha vida miserável, ter que agüentar ele constantemente de cara amarrada. Aliás, não sei nem por que o aturei até aqui. Eu tinha dezesseis anos quando me casei com ele. A loucura das loucuras. Hoje as jovens se casam porque engravidam e antes que os pais as matem, já vão logo avisando que estão dispostas a casar, e acabam que casam mesmo, para satisfazer a família. Depois se separam é lógico. Hoje tudo é rápido e volúvel, usam as pessoas como usam esses computadores. Mas no meu tempo não era assim. Ah, não era! Se bem que casei por amor, um amor infanto-juvenil é verdade, mas pelo menos foi por vontade própria, ou próprias, já que nós dois queríamos casar. Aliás, já pus a panela no fogo alto, cheia d’água.
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Então ele tinha vinte e três anos quando nos casamos, já era maior de idade, tinha bom serviço – trabalhava para um advogado numa firma de contabilidade – e ainda por cima era um pão. Casamos e fomos morar em um quarto de pensão na Bela Vista. Era um grande casarão assobradado com uns dez quartos. Cada família morava em um quarto, e a sala gigante era para todos, assim como a cozinha. Banheiros eram três, mas um enguiçou alguma coisa no encanamento do esgoto da privada, e o marido da dona da pensão não conseguindo arrumar, virou despensa. Era uma fila danada para banhos e outros usos naqueles dois únicos banheiros! Pior era de manhã cedinho e a noite, ai Jesus!
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O acesso à casa era por uma escadaria enorme e íngreme, mas reta, com dois patamares no meio além do patamar de chegada que, na verdade, já era a sala. O fato de ser reta e ter duas pausas para descanso no meio, fazia dela um assombro. Não sei ao certo, mas acho que eram uns vinte e tantos metros de subida. Vista de baixo dava até medo. Uma queda lá de cima seria fatal. E foi mesmo...
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Aconteceu com o seu Godofredo, um senhor viúvo e muito idoso que durante anos morou no casarão ocupando um quarto sozinho, o que era um luxo, pois as pessoas se apinhavam em cinco, seis em um único quarto; famílias grandes. Mas um dia o seu Godofredo fez um apoio errado com a bengalinha dele e despencou lá de cima rolando até bater forte com a cabeça na porta que ficava no sopé da escada; morreu na hora, o coitado.
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A dona da pensão, dona Laura, que já deve ter morrido há muitos anos - que Deus a tenha -, pois já era velha quando eu ainda era mocinha, correu acudir o velho junto com outros dois homens que moravam lá e ouviram a barulheira da queda; mas o seu Godofredo já chegou lá embaixo mortinho da silva.
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Outra coisa interessante na escadaria do casarão era o fio de varal que descia acompanhando o corrimão dentro de umas argolinhas de ferro presas à parede, e que ia dar lá embaixo no trinco da porta de madeira azul. Um puxão lá de cima destrancava aquela portona de cinco metros de altura, lá embaixo. Uma grande tecnologia aquela! Qualquer morador era autorizado a destrancar a porta quando chamavam, não havia regra nem responsável pra isso, pois também não havia assaltos como hoje em dia; e nunca se sabia quem era que estava tocando a campainha, não existiam interfones, câmeras, essas coisas; quem estava na sala berrava um “já vai” bem alto e ia lá destravar a geringonça. Aí, lá embaixo, um infeliz empurrava a porta que rangia fazendo um eco surdo na galeria, enfiava a cara pra dentro do corredor da escadaria e berrava: “fulano taí?”. Então a pessoa lá de cima gritava pra dentro do casarão: “tem um homem lá embaixo querendo falar com o fulano!”. Logo depois: “ele falou que já vem!”, ou: “tão dizendo aqui que ele saiu de bonde pro centro”, e era assim, tudo no melhor estilo Bela Vista dos anos 50.
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Estou ouvindo a água começar a ferver. Engraçado água quando ferve, começa um leve assoviuzinho... Já já a panela estará tremilicando e fazendo barulho nas grelhas do fogão. Ah! Esqueci de contar que o seu Godofredo foi velado na sala do casarão. Apesar de que aquilo não era bem uma sala como a gente conhece hoje. Era um salão enorme, com pé direito de uns seis metros, dava quase pra construir um sobrado inteiro só naquela sala.
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Agora ele está dormindo. Sempre dorme depois de almoçar aos domingos. Preciso parar de escrever aqui e fazer o que tem que ser feito logo, antes que ele acorde. Eu disse que ele era lindo e romântico quando nos casamos? Pois era mesmo. O desgraçado era bonito pra valer. Todas as mulheres achavam ele um pão. Mas o romantismo dele acabou em poucos meses. Logo virou um cavalo estúpido e seco; foi muito rápido, em menos de um ano de casado já era outro. Tenho que aprender a datilografar isso aqui com mais jeito, caço milho pra achar as letrinhas e pra fazer uma frase é um parto. A panela começou a chiar mais forte agora. Usei um panelão que tenho que dá pra fazer arroz pra um exército inteiro. Deve caber uns vinte litros de água nele. Daqui a pouco vou buscar. Ainda não sei como vou fazer pra carregar aquilo sozinha, sem fazer barulho. Acho que vou vestir uns quatro aventais e carregar pelas alças apoiando na barriga.
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Estamos casados há quase sessenta anos. Fomos jovenzinhos um dia e hoje somos dois velhos rabugentos. Eu estou toda doente. Tenho tudo o que se pode imaginar: diabetes, hipertensão, catarata, gota e já tive um derrame que me paralisou parte do rosto. O velho maldito está com a saúde de um moço de trinta anos. Vaso ruim. Passou uma vida sem preocupações, só bebendo e andando com mulher por aí, e eu resolvendo tudo em casa. Tivemos dois filhos. Jorginho morreu no parto. Ele nem ligou. Vai ver até que ligou, mas se ligou não pareceu. Estávamos casados há menos de quatro anos e o puto já tinha amantes pelo Bixiga todo. E eu era a palhaça do bairro.
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Depois que o Jorginho nasceu e morreu, ele se afastou ainda mais de mim. Nessa época já não morávamos mais no casarão. Fomos morar num conjugado ali perto da Conselheiro Brotero. Então, logo depois da morte do menino ele arrumou um trabalho que o fazia viajar pelo interior de São Paulo todo, carregando duas pastas com amostras e garrafinhas. Tava ganhando um bom dinheiro, mas eu nunca soube quanto. Ele era uma espécie de caixeiro viajante, vendia bebidas finas; pelo menos é o que ele dizia... Acho que estava mesmo metido em alguma coisa ilegal. Vinha pra casa uma vez por semana cheirando a mulher e bebida, deveria andar em boates com putas, isso sim. Nessa época ele passou a beber bastante, dizia que era para poder explicar direito as bebidas aos fregueses. Veja você! Numa dessas vindas dele pra casa, engravidei de novo. Hoje nosso filho está casado e mora no sul com a mulher, uma loira bonita, meio alemõa, alta. Boa moça. Ainda não me deram netos, mas nem sei se quero também. Ando tão desanimada com a vida...
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A panela está fervendo e estalando, acho que chegou a hora. O que tem que ser feito, tem que ser feito; meu finado pai me ensinou isso e nunca na vida esqueci.
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Ele está dormindo feito um porco de barriga pra cima com a boca aberta fedendo feito um ralo, porque ele largou de escovar os dentes faz tempo. Da cozinha vem os estalos da panela trepidando e do quarto o ronco do bode velho. Contei que ele me batia? Me bateu durante anos. Não bate agora porque fiquei gorda e forte e não tenho mais nada a perder. Se ele levantar a mão pra mim agarro no pescoço dele e esgano, ele nem se atreve. Mas quando o Daniel era pequeno, via o pai chegar da rua e espancar a mãe por nada; coisa ruim de criança ver. Talvez por isso tenha ficado assim, distante e frio. Mas de mim ele gosta. Liga toda semana e conversamos bastante, mas do pai ele só pergunta se está bem e nem pede pra falar. Agora vou fazer o que me propus a fazer, antes que a água seque e não dê pra matar bem matado como preciso que ela mate. Já volto.
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Está feito. Consegui carregar a panela e despejei a água escaldante toda e ele nem se mexeu. Agora não acorda mais, o puto. Seria horroroso aquele bode velho gritando e me enchendo o saco justamente numa hora dessas. Derramei em todos os outros também; nos do banheiro e nos da varanda. Pronto, os ralos estão esterilizados e as baratas e os insetos malditos já devem estar no inferno a essa hora.
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Ainda bem que o bode não acordou pra me aporrinhar. Odeia que eu jogue água fervendo nos ralos; aliás, odeia tudo o banana. Quero ver odiar agora. Ô meu Deus, preciso aprender a usar isso aqui direito...
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Cesar Cruz
Abril/ 08
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14 comentários:
Gostei do conto....Do déiz pau !!!
31.3.08
caro amigo cesar.
veja como são as coisas.recebi teu email,hoje com as novidades da masisa, e na verdade eu estava meio "Down" diante de diversos problemas, do dia a dia.E por coincidencia vc me convidou a entrar em seu blog.
olhe meu amigo, já achava vc, um puta vendedor, e agora fiquei surpreso, com sua capacidade de escrita.
parabéns, não tive tempo de ler todos seus causos e contos, mas pelo que já li, vc tá de parabens. é acho que só mesmo a idade, faz com que, começemos a dar valor à coisas que antes ,nada significavam pra nós, e a ver prazer em coisas que antes seria impossível.
Deus te ilumine, e parabéns amigão, apesar de nos vermos pouco, te admiro pacas.
bjs no coração.
Eliseu
4.4.08
Oi Cesar, hj finalmente estou aki pra tirar a prova do meu "trauma" de contos.
Só li um é verdade, tenho q ir com calma!
Li pq o título é muito proximo de um livro infantil q pretendo escrever...sobre baratinhas....sim é verdade, minha amiga tem uma tecnica infalivel para acabar com baratas, nao posso contar aki pq senão meu livro não vende!!!
Ah....adorei! Parabéns, vou ler os demais, com calma, mas irei ler!
Bjs
Thais
11.4.08
Oi Cesar,
Li o conto... posso ser muito sincera... sem que vooê fique muito chateado??
Espero que sim... pq espero o mesmo de vc quando ler meus textos... afinal estamos aprendendo, e ler o outro é sempre bom...
bom.. vou falar.. se discordar de mim peço que não fique mesmo chateado, ok?
O conto é bárbaro.. a idéia idem... mas me pareceu que vc ficou cheio de dedos mesmo para fazer as vezes da velhinha... Ficou muito descritivo, mas de forma objetiva, o que pra mim não parece ser tão íntimo como deveria, ja que é seu personagem que está narrando. Acredito que se "floreasse" um pouco mais... tipo, como explico isso... se vc tornasse a narrativa mais sentimental... exemplo (não tirado do seu texto): "Acordei as 6 da manhã e aquele velho ainda roncava ao meu lado. (objetivo)
6 horas. Acordei um tanto cansada, talvez a idade, talvez o desânimo em olhar para o lado e me deparar, novamente, com o mesmo homem roncando como todos os anos em que estamos juntos. (mais emocional"
Não sei se dá pra entender... claro que o exemplo ficou péssimo pq to escrevendo sem pensar muito em forma e etc... só pra mostrar o que quero dizer.
eu acho que quanto mais velho se é, mais emoçoes se tem em relação a tudo...
Bom... isso é o que eu penso...
De todo o resto está super bom mesmo!
Não fique bravo nem me leve a mal. por favor...
Bjs
Paula Cury
7.8.08
Boas férias Césinha!
Refresca a caixolinha para voltar arrasando em Agosto.
beijos nas meninas.
Glau
Aaaaa! Esse é pra bom entendedor! Ela cozinhou o velho ou só as baratas? Trata de explicar isso Cesar!
abraço Nilton
Ei, famoso, te ouvi na CBN que chique , heim!!!!!!!!!!!
Parabéns...
bjs,
Vânia
Que medo dessa véia!
abç!
Wilson
ADOREI!!!
Tinha certeza que ela ia matar o marido, muito legal!
Vou lendo as outras com calma.
Não sabia desse seu dom, bárbaro!
Parabéns!
Bjsss
Luciana Mello
Cesar
Sempre leio seus artigos no jornal. Hoje resolvi vir visitar seu espaço. Muito, muito bom! Este conto, alias supreendente! Surpreendente mesmo. Permite dupla, até tripla interpretação. Trechos como:
"despejei a água escaldante toda e ele nem se mexeu" e, antes: "Ele está dormindo feito um porco de barriga pra cima com a boca aberta fedendo feito um ralo, porque ele largou de escovar os dentes faz tempo", fazem com que o leitor não consiga identificar, ao certo, o que aconteceu. Brilhante! Outra coisa muito bacana: a narração em promeira pessoa, na pele de uma velha, cheia de expressões do passado, pontos de vista antiquados e etc.
Discordo TOTALMENTE da Paula. Acho que a narração está no ponto de equilíbrio perfeito, a cara de uma mulher de cultura popular, bairrista, que teve uma vida doméstica, muito machucada por um homem distante e bruto... Como imaginar essa mulher fazendo reflexões cheias de sensibilidade? Me perdoe, Paula, mas você não entendeu o conto.
Cesar, 1 grande beijo e parabéns pelo trabalho e por este belo texto.
Nair
Aclimação
"As baratas do ralo", caro Cesar, é um excelente conto.
Não se pode dizer que seja um conto longo ou curto porque a história muito boa, e tão bem contada que chegamos ao seu final sem perceber o espaço do texto percorrido.
Um abraço,
Pedro.
Oi, Cesar: adorei. Pra mim não falta nada. Gostei da maneira da velhinha falar - tri de tosca -, aliás como está cheio nesse Brasilzão. Mas esse seu palavreado é que deu molho no texto. E são coisas que ouvimos muito no nosso cotidiano.
Tiveste muita criatividade em fazer a velha desenrolar a língua, contar das grossuras do ‘cavalo’. A vida na pensão foi narrada de uma maneira que fiquei imaginando...
O fio que abria a porta, o ‘já vai!!’, e os banheiros... O jeito ‘meigo’ que ela tratava o velho, revelava que estava de saco cheio... E o pior que isso é muito verídico, sem fantasia.
Em suma: adorei!
Bjs
Tais luso
Cesar gostei demais desse conto, parabéns. Tenha uma linda semana, beijos.
EI, Cezar! Simplesmente a-mei seu comentário mais do que sensato no meu blog. Seguirei o seu a partir de agora. Adorei o conto mais recente!!!
Um beijo.
Sabina
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