As histórias dos velhinhos

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Crônica publicada no programa "Conte sua História de São Paulo" da rádio CBN, sábado dia 13 de junho de 2009.
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Narrada da voz de Mílton Jung e com produção especial! (Escute o áudio sem sair do blogue! Acesse-o na coluna à direita, junto ao logotipo do blogue do Mílton Jung)
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Como são gostosas as histórias que os velhinhos contam! Quando eu era menino lembro de ouvir meu pai dizer a cada vez que perdíamos um ancião da família: “Que pena, mais um velhinho que parte levando suas histórias!”. Hoje eu sei... uma grande pena mesmo!
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Meu tio Milton, irmão mais velho do meu pai, contava causos sensacionais passados na meninice deles. Tais histórias envolviam tios e parentes que eu e meus primos nem havíamos conhecido.
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Era sempre uma delícia ouvir relatos de uma época tão diferente da nossa, e de imaginar nossos pais ainda crianças, aprontando as mais diversas safadezas em uma cidade tão diferente da que conhecemos hoje, com poucos carros, outros hábitos de vida... Tão ingênua!
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Minha mãe também era dona de histórias espetaculares. Eu gostava de uma em especial. Nela, papai e mamãe ainda namorados, no final dos anos 50, foram numa certa tarde ao cinema e depois a uma lanchonete no centro da cidade comer um hot dog, programa típico de casaizinhos jovens da época. Pouco antes de irem embora, já à noitinha, minha mãe (que era linda e as fotos não desmentem) levantou-se e desfilou em direção ao banheiro.
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Na outra extremidade do estabelecimento havia um grupo de 4 sujeitos mal-encarados rindo e bebendo. Quando ela passou toda graciosa em sua saia e blusa, um deles curvou-se para trás na banqueta e segurou-a pela cintura: “oi chuchuzinho, vem comigo, vem...”. Minha mãe, temperamento forte que sempre teve, não titubeou, tascou-lhe um sonoro tapa na cara. Meu pai que terminava seu hot dog na outra ponta da lanchonete ouviu o bafafá e, quando se virou, viu parte da cena. Tomado por uma ira explosiva, característica de sua personalidade, não contornou o balcão em formato de “U” duplo, preferiu ir saltando-o olimpicamente, pisando alternadamente nas banquetas fixas e nos balcões, para desespero dos casais de namorados que, assustados, recolhiam apressadamente suas garrafas de Grapete e seus pratos com misto-quente!
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Em segundos seu Aloisio estava cara a cara com os sujeitos. Deste momento em diante, minha mãe dizia que sua vista escureceu e ela não conseguiu ver mais nada. Apenas alguns flashes ficaram tatuados em sua lembrança para sempre. Neles, dona Diva via homens sendo arremessados pelo ar e se estatelando sob pilhas de copos e pratos, como nos filmes de saloon.
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Em certa parte do relato, ela passava a falar baixinho e a espiar por cima do ombro, como se houvesse o perigo de alguém, 50 anos depois, ouvi-la. Confidenciava que, na escuridão do seu pânico, pôde escutar os sons dos murros, os gritos abafados de dor na voz dos homens e os ruídos secos de maxilares e ossos sendo quebrados. Terminava dizendo que não esqueceria aqueles sons ainda que vivesse 100 anos, e que desde aquele dia, passou a morrer de medo a cada vez que meu pai ficava nervoso: “ninguém segura ele, Cesar... ninguém segura!”.
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No final da história, o jovem Aloisio, atleta praticante de judô e boxe, deixara os 4 maus-elementos moídos no chão em meio aos escombros.
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Partiram correndo a tempo de pegar o bonde andando.
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Minha mãe, assim como o meu tio Milton, já se foram. Partiram levando com eles todas aquelas apaixonantes histórias. Irrecuperáveis, por mais que nós, os filhos, tentemos reproduzi-las.
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Eu, infelizmente, não tenho mais avós nem pais vivos. Transformei-me precocemente num órfão de causos sensacionais como estes. Arrependo-me tanto por não ter gravado os meus velhos contando-os!
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Mas ontem à noite... Ah, ontem à noite tive uma oportunidade única! Pude ouvir, assim de surpresa, uma legítima história de velhinho!
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Aconteceu assim: Eu e a Vanessa fomos buscar a avó dela, Dona Olinda, para jantar. No caminho, enquanto eu dirigia o carro, elas iam conversando. Dona Olinda passou a falar do amor que tinha pela neta, que sempre foi sua companheira desde a mais tenra idade etc e tal. Então, para minha grata surpresa, Dona Olinda, de repente, começou a relatar uma história maravilhosa, que juro, farei-a repetir de frente para uma filmadora em breve, antes que eu me arrependa de novo!
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A história rememora uma época há 21 anos atrás, em que a Vanessa, com apenas 3 anos e meio de idade ia todo o domingo ao culto evangélico com a avó.
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As duas caminhavam a pé por 3 quarteirões até chegar à pequena igrejinha. A avó geralmente vestia a menina com vestidinho florido e prendia parte do seu cabelinho em cima da cabeça com um elástico colorido. O restante deixava solto, lisinho, caído na altura do ombro. Tapando a testa, sempre a obrigatória e geométrica franja da Xuxa.
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A liturgia do culto era a mesma todo o domingo. Em determinado momento o pastor anunciava: “agora a irmãzinha Vanessa vai cantar um hino para os irmãos”. Ela olhava para a avó ao seu lado, aguardando aprovação; então escorregava com certa dificuldade de cima do longo banco de madeira e caminhava confiante por entre as fileiras em direção ao púlpito. Subia, recebia o enorme microfone das mãos do pastor e após saudar todos os presentes com: “a paz do Senhor, irmãos”, se punha a cantar uma das inúmeras canções cristãs que conhecia de cor:
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Vamos marchando para a linda terra, vamos marchando para a terra prometida!
Vamos marchando para a linda terra, vamos marchando para a terra prometida!
Eu avistei a linda terra, e esta terra é Canaã!
Eu avistei a linda terra, e esta terra é Canaã!
Se você não vai, não impeça a mim!
Se você não vai, não impeça a mim!
Glória a Deus aleluia, pois eu vou para Canaã!
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Quando terminava, devolvia o microfone ao pastor e voltava para o lado da avó, sob os aplausos e os sorrisos de toda a igreja. Dona Olinda não cabia dentro de si de tanto orgulho!
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Certo dia o pastor surpreendeu Vanessa pedindo-lhe que cantasse uma música que ela não se lembrava muito bem. Encabulada, arriscou mesmo assim, mas errou a letra em diversos momentos. Sentadas na primeiro fileira, 3 garotinhas de uns 10 ou 12 anos tentaram ajudá-la, mas sem querer, constrangeram-na ainda mais.
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De acordo com a Dona Olinda, a pequena Vanessa, envergonhada, devolveu o microfone ao pastor, voltou para o lado da avó segurando o choro e daquele dia em diante nunca mais quis cantar na igreja.
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Cesar Cruz
Set/ 2007
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* créditos dos parceiros no rodapé do blogue.
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9 comentários:

Anônimo disse...

que linda história. parabéns! queria encontrar este hino na net mas não achei... acabei achando sua bela história! Valeu! beijos Silvia

26.6.08

Anônimo disse...

me vieram lágrimas amigo! como vim parar em seu site não sei. Estou com alunos na sala de aulas fazendo pesquisas. Sou professor no ensino fundamental aqui em Minas. Mas valeu o dia essa linda história! Lembrei dos meus avós!
Edvaldo
Fervedouro-MG

09.6.08

Anônimo disse...

Seu melhor conto (até agora) meu amigo. Delicado e terno, apesar das porradas do Seu Cruz.
Abraço,
Gabriel

Anônimo disse...

Só quero deixar de ser solteira se tiver um homem que pule balcões e quebre a cara de rapazem que me chamem de chuchu. Por ele sim valerá a pena.

Vanessa pequena, que graça. Meu total apoio para que ela volte a cantar, nem que seja "Dorme filhinha do coração" ou "Bicho papão sai de cima do telhado". Pergunte a opinião da avó dela pra você ver.

Beijos, mais uma vez, gostei.
Mara Ruzza

Armando Italo disse...

Respostas para “Conte Sua História de São Paulo: Dos velhinhos” - Postado no link: http://colunas.cbn.globoradio.globo.com/miltonjung/2009/06/13/conte-sua-historia-de-sao-paulo-dos-velhinhos/

Armando Italo:
13 Junho, 2009 as 13:59

Ola Cezar
Como era gostoso ouvir das historias e estorias dos nossos tios, avos, pais, os mais vlhos, sabios, simples.
Será que atualmente os nossos filhos sobrinhos, netos ouvem as nossas historias também e repassarão as nossas aventuras aos seus?

Grande abraço
Armando Italo

Gabriel Teodoro Fernandes disse...

O comentário abaixo foi feito no blog do Milton Jung.

Gabriel Teodoro Fernandes:
29 Junho, 2009 as 12:23

Parabéns, Cesar.
Seu causo é de emocionar. Todos nós, pelo menos os mais sortudos, tivemos nossos Aloísios, nossos tios Míltons e nossas Divas. Além de perdermos o relato de histórias incríveis, com o desaparecimento deles perdemos também parte de nossa memória e de nossa história.
Grande abraço,
Gabriel

Marcelo Lopes disse...

Olá Cesar,

Muito legal mesmo!!! Você vai longe rapaz...segue assim que vai acabar fundando uma cadeira na ABL...rs

Abs,
Marcelo Lopes

Ricardo Gondim disse...

Querido Cesar,

Quando estiver rico e famoso, não esqueça da gente.

Um beijo,

Ricardo

Moacir de Souza disse...

Absolutamente lindo, engraçado, emocionante... esplêndido, enfim!

Parabéns!
Moacir, Aclimação