A casa do penhasco

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Em pé na beira do precipício o homem experimentava uma mistura louca de sensações. Metade dos pés estavam para fora no ar, pensos no abismo. Subia-lhe pelo ventre um fino arrepio e uma desconcertante vertigem assaltava-lhe a mente a cada vez que seu corpo balançava para frente e para trás. O homem fechava e abria os olhos que, por vezes, reviravam-se desordenadamente nas órbitas. Imaginava-se flutuando pesado, de braços abertos, como uma ave que não voa, caindo em direção à morte. Desejava ser puxado ou empurrado, pois não conseguia, por si só, projetar-se; apesar de desejar muito fazê-lo...
Por entre as pontas de couro dos calçados podia avistar o colossal abismo e o mar explodindo contra os rochedos, cem metros abaixo. O rugido leonino do oceano parecia chegar aos seus ouvidos com uma fração de atraso em relação ao que se avistava. Apesar do esforço que a vento fazia para dissipá-lo, o cheiro denso e morno da maresia já era intenso naquele princípio de manhã de primavera.
Havia dirigido por duas horas, embriagado pela mistura de tristezas, decepções e inexorabilidades que a vida tinha definitivamente lhe imposto. Construíram aquela linda casa de veraneio na porção mais cara e exótica do litoral, em uma região árida de caiçaras e turistas. Ali tinham sossego para descansar, e claro, possuíam aquela vista única, do alto dos rochedos.
A casa era a materialização de todos os sonhos que ele havia um dia se atrevido a sonhar com Maria Inês, era um símbolo da felicidade dos dois. Combinaram que quando ficassem velhos e inaptos para o trabalho se refugiariam na casa até que a morte os viesse buscar. Nunca tiveram filhos, pois assim a natureza determinou. Após muitas tentativas descobriram que a mulher era estéril. Isso foi três anos após terem se casado. Pensaram em adotar um guri, mas não passaram do mero pensar. Tiveram um cão por um tempo, mas, um dia, o cão correu para a rua na hora errada e foi atropelado.Após quinze anos de um casamento feliz, Maria Inês atravessou com seu carro um cruzamento na hora errada.
O semáforo estava aberto para ela; eram onze horas da noite e ela voltava para casa depois de dar aulas na faculdade. O caminhão perdera os freios e o cruzamento era em declive... Maria Inês morreu na hora.
Haviam acordado que, no caso de um deles morrer, o outro se encarregaria de cremar o corpo e lançar as cinzas naquele penhasco. Ele havia cumprido a promessa, há exatos três meses. Ficara só no mundo desde então. Já não tinha os pais vivos e não se dava com o único irmão, isso desde que eram jovens adultos, ainda imberbes. A única coisa que sabia era que o irmão vivia com mulher e filhos na Inglaterra, distante física e mentalmente dele. Era homem de poucos amigos, sua única amiga era Maria Inês. Depois que o acaso a tirou da sua vida, não conseguiu mais fazer os dias fluírem e caiu em profunda tristeza e depressão. Já não tinha ânimo nem motivo para trabalhar. Nada mais o entusiasmava, nem cinema, nem leitura. Só sabia fazer coisas com Maria Inês. Não conseguia agradar-se de nada sozinho. Passava o dia no escritório da construtora em que trabalhava, mudo para os colegas. Sua atividade de gerenciador de projetos exigia pouco contato cara a cara com as pessoas, desta forma, o computador e o telefone produziam uma conveniente distância dos profundos, interrogativos, curiosos e inquisitores olhos alheios.
Uma manhã, ao abrir seu programa de e-mails no escritório, deparou-se com a seguinte mensagem:
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De: um amigo Para: fernando.lima@jrbempreendimentos.com Data: 23 de julho de 2002 5h27min - a.m Assunto: pare de sofrer Amigo, sei que não me conheces, mas à distância, tenho acompanhado teu martírio. Não posso me eximir de lhe ajudar, pois um dia fizeram o mesmo por mim. Também tive uma perda. Uma irreparável perda. Tive um filho morto pelas mãos do crime. Mas qual não foi minha surpresa ao descobrir que perdas deste tipo podem ser reparadas! Um dia fui apresentado ao bruxo Gonzales. Em um primeiro momento não acreditei que seria verdade, mas fui ao seu encontro e descobri que sim! Que há saída! Não peço que acredites em mim, só peço que dê a si mesmo e à Maria Inês uma nova chance. Tel: 271-3597
Desejo-lhe a vida!
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Não foi capaz de produzir uma única linha de trabalho naquela manhã. Sua mesa foi represando papéis e sua mente recados e tarefas passadas por sua secretária, mas ele não conseguiu mais se concentrar em nada. Leu e releu a mensagem inúmeras vezes. Por fim, respondeu pedindo ao remetente que fizesse um contato telefônico. Precisava descobrir de onde o conhecia e como ele sabia o nome de sua mulher.
Os e-mails que enviou voltavam imediatamente com mensagens que indicavam endereço inexistente.Quem seria ele? Fosse quem fosse parecia conhecê-lo, e ao seu sofrimento, e a sua Maria Inês... Mas como? Pensou em muitas pessoas, mas foi excluindo uma por uma. Algumas porque não estavam ligadas a correios eletrônicos ou à internet, outras, pois não teriam como ter o seu endereço eletrônico que era exclusivamente comercial; e as demais, pois nem sabiam que Maria Inês havia morrido. Por fim, não sobrou ninguém. Naquela noite não dormiu. Vagou pela casa durante a madrugada inteira. Na mão carregava uma folha com a impressão do e-mail já marcada pelo manuseio e pelas dobras. Lia e relia para ver se encontrava alguma pista. Ia à janela ver a rua vazia com o guarda que vez por outra passava assoviando seu apito, ou descia à garagem e depois voltava à sala; fez assim até ver o dia amanhecer. Quem ele conhecia e que teria tido um filho assassinado? Talvez o amigo de algum conhecido? Não, não se recordava de ninguém em tal situação. Pensou também acerca do estranho cumprimento final: “Desejo-lhe a vida!”. Que grupo organizado usava tal cumprimento? Algum grupo cristão? Pesquisou pela web e nada. Talvez os maçons ou os rosa-cruzes? Os gnósticos? Não achou nada. Nenhum grupo esotérico ou religioso parecia usar tal saudação.
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Quando o dia amanheceu resolveu fazer o que vinha protelando desde que lera a mensagem. Puxou o aparelho do gancho e começou a teclar os números do telefone indicado. Espiou o relógio: quase 6h da manhã. Deu-se conta de que há exatas 24h, alguém, em alguma parte, havia resolvido sentar de frente para um computador e lhe enviar aquele e-mail. Tal pessoa poderia, portanto, ter aquele momento matutino como o único disponível em todo o seu dia para checar e responder à correspondências eletrônicas. Voltou o aparelho para a base na hora e correu para o computador, ligou-o na esperança de que o amigo, fosse quem fosse, poderia responder a uma das três mensagens que ele havia disparado. Ou ainda, quem sabe, poderia retornar para os números que ele havia deixado. Aguardou por alguns minutos e logo foram chegando muitas mensagens, mas nenhuma do tal amigo.
Foi para a cozinha e fez café. Tomou-o acompanhado de bolachas salgadas para fazer matar o tempo, mais do que a fome, que na verdade não sentira. Espiou o relógio do forno: 06h35min.
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Voltou à sala, apanhou o telefone e discou o número, desta vez decidido. Três toques e atendeu a voz de um homem idoso com sotaque castelhano, mal ele começou a explicar que havia recebido um e-mail com aquele telefone etc., o homem interrompeu-o dizendo: “hombre, la muerte viene cuando menos se espera. Para estos momentos estamos los amigos. Vem a verme hoy. Estoy en la calle...”, e passou a ele um endereço em uma região na periferia da cidade que ele nem sabia que existia.
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Quando ligou para a empresa do celular, já a caminho do local indicado, já eram oito horas. Disse à secretária que passara a noite em claro com vômitos e que se melhorasse apareceria após o almoço. Desligou e foi dirigindo, com o guia da cidade no colo aberto sobre uma das coxas.
Chegou ao local após ter remexido o guia muitas vezes e pedido dezenas de indicações. Rua de terra, crianças sem camisa empinando pipas, um botequim bem próximo com homens jogando sinuca e bebendo.
Bateu palmas na frente do portão que tinha o número que trouxera especificado em um pedaço de papel. A casa era muito pequena e bastante recuada no terreno, tinha toda a frente em terra tomada por galinhas e cães que reagiram com alvoroço à sua presença. Um homem velho acenou para ele à distância, da porta que dava acesso à casa. Tinha os cabelos brancos e amarelecidos amarrados em um rabo de cavalo e cobertos por um boné. Ele pensou que este deveria ser o tal bruxo Gonzales.
Passou pelo pequeno portão de madeira, fechou-o atrás de si e caminhou pelo declive acidentado do quintal, amassando o barro úmido e fofo, produto de alguma chuva recente. Avançou por entre os cães que o cheiravam, saltavam e latiam sobre ele, espargindo lama em suas calças e colocando as patas em sua camisa branca. Ao contrário dos cães, as galinhas fugiam correndo à sua frente, como se estivessem sendo perseguidas por ele, e então, como em um exercício de balé bem ensaiado, descreviam círculos centrífugos; grupos seguiam à direita e grupos iam para a esquerda, e por fim, terminavam se posicionando em um único bloco compacto atrás dele.
Foi recebido à porta sem aperto de mãos e levado à sala, que parecia ser também dormitório, pois havia duas camas encostadas nos cantos.
O teto não tinha laje, as tesouras de madeira úmida, que suportavam o telhado de barro, pareciam apodrecidas e exalavam um cheiro doce de fermentação. O chão era de concreto queimado vermelho-terra e havia três baldes de metal posicionados aqui e acolá, colocados de forma a conter as goteiras dos dias chuvosos. O cheiro de cachorros era forte e se misturava ao de umidade.
Foi-lhe indicado um sofá esburacado e seboso. Sentado no chão ao seu lado um menino de mais ou menos seis anos que assistia a um desenho animado mal sintonizado e em alto volume, parecia indiferente à sua presença.
O velho puxou uma banqueta e sentou à sua frente. Era um tipo indígena-boliviano. Acendeu um cigarro mal cheiroso que produzia densa fumaça amarronzada, apoiou as mãos sobre os joelhos e inclinado encarando-o olho no olho, perguntou: “estas seguro de lo que quieres hacer, hombre?”. Antes que o homem tivesse tempo de responder, ou de perguntar, o velho falou expondo um sorriso amarelo de dentes por demais apodrecidos: “tus ojos me aseguran que sí”. Então, produzindo baforadas volumosas de fumaça, e sem dar espaço para que qualquer palavra fosse emitida pelo outro, o velho índio falou durante vinte minutos sobre tudo o que ele teria que fazer.
De repente se levantou, tirou o boné e o pôs sobre a banqueta onde sentara, com a concavidade virada para cima. Saiu sem se virar para ele, sumindo por uma porta lateral do cômodo. O homem que já se preparara para tal momento. Abriu a carteira, sacou cinco notas robustas e colocou-as no boné. Entendendo que não haveria maiores despedidas, levantou-se e saiu.
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A matilha de cães e as galinhas pareceram menos interessada nele agora do que na chegada, ainda assim dois vira-latas o acompanharam até a porteira, latindo alto e jogando-lhe mais lama. Quando fechou o portão atrás de si, o velho índio gritou de dentro da casa: “Hernando! no hagas nada desto si no estas mui seguro... Recordate que pocas cosas seran como fueran um dia!”. De alguma forma o índio sabia o seu nome, e ele tinha certeza que não havia lhe dito, aliás, não conseguiu falar mais do que três palavras naquele insólito encontro.
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Passaram-se quase cinqüenta dias daquela estranha entrevista. O homem havia feito, logo na primeira semana, tudo o que o velho bruxo o mandou fazer. Comprou a cabra, imolou-a com uma faca virgem em um descampado à noite e ofereceu o sacrifício e o sangue vertido aos deuses em um ritual solitário em uma praia deserta. Durante o ritual teve que ler em voz alta alguns trechos - que levou copiados em um papel - em uma língua que desconhecia. Realizou tudo com esmero. Sentiu-se ridículo em alguns momentos e assustado em outros.
Nos dias que se seguiram aguardou por algum tipo de sinal. Não sabia bem o que esperar. Pelo que tinha entendido, Maria Inês deveria voltar, mas o velho índio não havia lhe dado oportunidade alguma de fazer perguntas. Não entendia, portanto, como aconteceria. O misterioso amigo que lhe enviara o e-mail, nunca mais...
Estava novamente só com seus pensamentos desconcertantes e a ansiedade que não lhe dava trégua. Com o passar dos dias e o suceder de tarefas, acontecimentos e demandas da vida foi gradualmente se esquecendo do que fez. Sua inquietação foi esmorecendo, diluindo-se. Houve momentos em que ele nem mesmo acreditou que houvesse feito tudo aquilo. Parecia para ele um sonho. Teria sonhado? Como pôde crer em tal absurdo! Como pôde crer que Maria Inês poderia voltar à vida? Justo ele, um homem tão culto, estudado.
Houve dias em que esteve tão atarefado no trabalho, que nem mesmo pensou em tudo aquilo. Ah, o tempo...
Havia lido sobre o passar do tempo e suas peculiaridades algumas vezes; nada como o tempo para apagar as coisas! E o tempo estava operando justamente isso nele. Não um esquecimento, mas uma trégua, uma cessação no enlouquecido turbilhão mental pelo qual passou nos primeiros quatro meses após o desastre.
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Certo dia levantou-se da cama antes do dia amanhecer. Havia tentado concatenar o sono desde as 23h, mas não foi capaz de dormir. A saudade, aquela dama cruel, havia lhe tomado em um apertado abraço de urso, e parecia não querer largá-lo. Nos poucos momentos em que cochilou, sonhou com Maria Inês. Estavam em uma praia linda e o céu estava avermelhado. Maria Inês sorria sem dizer uma palavra, estava muitos metros distante dele e quando ele tentava alcançá-la, ela parecia se afastar, mas sem mover os pés, como se flutuasse.
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Ligou o chuveiro. Fazia algum frio, era madrugada de sábado para domingo, 04h15min. Tomou um longo banho quente. Saiu do chuveiro, secou-se e vestiu-se com uma calça de moletom e uma camiseta de algodão de mangas longas. Escovou os dentes em uma das pias. A longa bancada de granito negro contava com duas pias e lindos lavadores de aço escovado em arco, que pareciam postes de iluminação pública. Todo àquele luxo fora exigência de Maria Inês na ocasião do projeto do banheiro. Olhou seus olhos no espelho e pensou: “como pude acreditar naquilo, meu Deus!”. Foi para a sala e ligou a TV para passar o tempo. Um programa sobre agronegócios estava no final. Zapeou os canais com o controle remoto. Imagens desinteressantes se alternavam. Baixou o volume e quase cochilou.
De repente ouviu um barulho forte vindo da cozinha e saltou do sofá. Era o ruído característico da porta da geladeira sendo aberta. Foi ver.
Chegou à porta da cozinha e estancou congelado. Maria Inês estava de costas para ele, uma mão segurava a porta da geladeira aberta, com o tronco curvado parecia procurar algo nas prateleiras baixas do refrigerador. Vestia a mesma roupa com que fora sepultada; a calça de linho bege bem cortada e a camisa branca de mangas curtas. Calçava os sapatos de couro marrons que foram cortados à tesoura na lateral pelo encarregado do necrotério para caber em seus pés inchados pela morte. Ele deve ter feito algum ruído, pois ela se virou e o olhou nos olhos. Ainda mantinha a porta da geladeira aberta. Olhou para ele com aquele olhar tão doce e não disse nada. A luz da geladeira quebrava a escuridão da madrugada jogando uma luz oblíqua sobre ela, conferindo-lhe um aspecto gostoso, algo de lar, de afeto, de retorno...
-Meu amor! - suspirou o homem se surpreendendo pela voz hesitante e cacofônica que produziu. Ela o fitou mantendo a expressão doce, porém distante; então, lenta e surpreendentemente virou-lhe as costas e curvou-se voltando a remexer a geladeira. “Ela não me reconheceu!”, pensou.
O homem sentia seu corpo ferver com os arrepios provocados pela adrenalina, sentiu-se zonzo, desnorteado. Pôs a mão nas costas da mulher e sentiu-a quente, viva, viva!
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Deveria ter desmaiado, pois acordou deitado sobre os azulejos frios da cozinha. Pensou que provavelmente teve aquele sonho estranho e perambulou como um sonâmbulo pela casa, até chegar à cozinha e cair prostrado. Concluiu que batera a cabeça forte, pois lhe doía muito o crânio logo acima da orelha direita. Encontrava-se estendido bem em frente à geladeira, justamente no local onde estava no sonho.
A dor profunda na cabeça pareceu aliviar quando ele espremeu os olhos com força. Olhou para o relógio do forno: 07h23minh. Imaginou que ficou muito tempo ali, caído naqueles azulejos frios. Caminhou em direção ao quarto, pretendia saltar na cama e simplesmente dormir, dormir por horas e esquecer aquele sonho, aquele episódio de sonambulismo e aquele maldito bruxo seboso. Deitou na cama, o quarto com as janelas ainda fechadas estava escuro. Entrou pelo meio dos cobertores e sentiu um calor. Espichou o corpo e tocou em algo sólido. Pulou da cama como um gato. Maria Inês estava embaixo das cobertas deitada em posição fetal, de costas para ele. Dormia em silêncio, quase enrolada em si mesma. Ele colocou-se em pé ao lado da cama, coração disparado. Então não fora um sonho, aquilo estava mesmo acontecendo. Observou que sobre o criado mudo ao lado dela havia um prato com os ossos do frango que sobrara do jantar e que ele guardara na geladeira no dia anterior. O escuro, a quietude do quarto e o sono silencioso de Maria Inês trouxeram-lhe uma inesperada calma. Sentou na ponta do colchão e ficou ali respirando, olhando-a e atinando com as idéias.
Como aquilo era possível? Apesar de não ter resposta para tal pergunta, tinha a certeza de que não estava em um sonho. Pensou a respeito dos sonhos e lembrou-se de uma de suas peculiaridades: às vezes quando ele sonhava, costumava pensar que poderia mesmo estar sonhando e então tentava acordar, e quando não conseguia, ficava na dúvida se vivia um sonho ou se estava acordado. Entretanto, em todas as vezes em que esteve realmente acordado, como agora, sempre soube diferenciar o devaneio de um sonho, da incomparável palpabilidade da vida real. Nada se compara à sensação de se estar vivo e acordado! A textura a acidez e a brutalidade que compõem o tecido da vida são únicas e inconfundíveis! Não se tem dúvida quando a experimentamos de fato...
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Sabia, portanto, que estava acordado e bem acordado; e que, por mais incrível que pudesse ser aquilo tudo, era verdade. Estava mesmo acontecendo. Maria Inês voltara da morte. Deu a volta na cama e se ajoelhou bem ao lado dela. Ficou olhando seu rosto bem de perto. Sentiu pela primeira vez, desde que a viu na cozinha, um nó na garganta. As lágrimas passavam a lhe descer pela face e os soluços forçavam para subir traquéia acima. Tapou a boca e o nariz com a barra da camiseta para não acordá-la e chorou doído, baixinho, enquanto permaneceu ali parado admirando aquele inexplicável milagre. Maria Inês respirava pesado, como alguém que dorme após um dia de muito cansaço. A boca ligeiramente aberta, como sempre foi seu hábito ao dormir. Tocou-lhe a testa com as pontas dos dedos e desceu contornando-lhe as maçãs do rosto. “Meu Deus do céu ela está aqui!”... Aproximou-se mais e tocou-lhe o rosto com os lábios. Pôde sentir o hálito que subia de sua expiração. Era fedido, quase insuportável. Permaneceu ali sentado um bom espaço de tempo sem saber que espécie de coisas pensar, nem o que fazer a partir de agora.
De quando em quando olhava com algum sobressalto por cima do ombro para o corredor além da porta do quarto, onde acreditava ter ouvido algum rumor.
Levantou-se e foi ao lavabo. Molhou nuca, testa e rosto em abundância. Secou-se com a toalha e fitou-se no espelho longamente. Olhou dentro dos seus olhos. Não entendeu o que viu. Poderia ser a imagem de um homem que estava enlouquecendo. Achou-se pálido ao extremo e surpreendentemente envelhecido. Ficou uns minutos mirando seus olhos fundos nas órbitas extremamente cavadas. Os olhos de alguém que certamente enlouqueceu e não sabe. Alguém que sonha e acha que está acordado. Alguém que crê que as pessoas podem voltar da morte, e de tanto crer, acaba por vivenciar algo tão verdadeiro e surreal como um delírio esquizofrênico.
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Voltou para o quarto e deixou-se largar ao chão com as pernas enroladas ao lado da mulher. Passou a tocar e revolver os seus cabelos que pareciam duros e secos como palha. O que faria agora? Avisaria as pessoas exatamente do quê? Imaginou-se comentando com o pessoal da empresa: “não estranhem, mas no jantar anual vou levar Maria Inês, é que ela voltou da morte e...”. Ou ligando para a mãe dela e dizendo: “Bom dia Dna Eulália, tenho uma notícia muito boa para lhe dar, Maria Inês está dormindo aqui na cama...”. Era impossível imaginar uma maneira socialmente aceitável de trazer uma pessoa morta de volta à vida.
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Estava inquieto e angustiado para vê-la acordada. Queria conversar com ela, entender o que ela estaria pensando, do que se recordaria. Será que teria lembranças deste período em que esteve morta? Era admirável para ele pensar em barbaridades tão insólitas como aquelas, mas por mais absurdo e extravagante que pudesse parecer, aquilo tudo estava mesmo acontecendo. De repente lembrou-se que Maria Inês fora cremada. Como ela poderia estar viva e perfeitamente reconstituída ali na sua frente? E de que forma ele teria que entender o absurdo daquele sapato aberto na lateral, se toda aquela roupa havia sido incinerada? O que significava aquilo?
Era como se tudo de razoável e tangível que ele se propusesse a pensar, estivesse perdido na densa fumaça de um descomunal contra-senso.
Não havia como encaixar nada daquilo dentro de uma lógica mínima. Cansado de pensar aqueles borrões de obscuridades mórbidas, levantou-se do chão, deitou ao lado da mulher e encaixado a ela, abraçando-a por trás, adormeceu.
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O fim de semana passou lenta e inalteradamente. Maria Inês não disse nenhuma palavra e não emitiu nenhum ruído. Só olhava para ele quando ele se sentava à sua frente para falar. Falou do período em que esteve sem ela, de como sofreu, da saudade que sentira e de como a vida havia ficado sem graça. Algumas vezes terminava puxando-lhe para si e a abraçando longamente apoiando sua cabeça em seus seios pequenos. Maria Inês não lhe devolvia o abraço, mantinha os braços parados ao longo do corpo e o olhar mirava através da parede à sua frente. Aquela sua tranqüilidade catatônica e silenciosa, produzia nele uma dor aguda. Era como se aquela pessoa fosse apenas um espectro da verdadeira Maria Inês. Talvez uma casca oca, sem o recheio de Maria Inês que deveria conter.
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A semana começou e ele não voltou ao trabalho. Pediu o adiantamento de uma semana em suas férias e ficou em casa trancado com a mulher.Sentava-a na cozinha e preparava longos cardápios da sua comida preferida para que comessem juntos. Enquanto se movia pela entre fogão aceso, pratos, temperos e preparos, ia lhe contando tudo o que havia acontecido com ele naqueles longos seis meses em que estiveram distantes. Contava-lhe também sobre o que ocorreu no mundo e no país; pretendia colocá-la a par de tudo, afinal Maria Inês sempre foi tão bem informada, certamente gostaria de saber daquilo tudo. Ela ficava estática, de frente para o prato, observando-o se mover, falar e produzir. Na hora da refeição ele se sentava ao seu lado e a servia na boca. Ela comia, sem expressar qualquer reação de desagrado ou prazer. “Talvez tenha sido um trauma morrer e ficar lá naquele silêncio e naquela escuridão da morte”.
Ansiava por ouvir sua voz. Dava-lhe banho e vestia-lhe com suas próprias roupas, que lavou uma a uma para tirar o cheiro de mofo. Punha-a ao seu lado no sofá e assistiam à TV e a filmes em DVD. Ele comentava com ela sobre tudo, como nos velhos tempos; mas não recebia retorno de nenhum tipo. Nem gestos, nem sons.
Por vezes ela adormecia ao seu lado e ele a punha na cama e voltava para a sala para ficar no escuro e pensar. Lembrou-se da frase do velho naquele dia: “Hernando! no hagas nada desto si no estas mui seguro... Recordate que pocas cosas seran como fueran um dia!”. Sim, ele foi avisado, mas simplesmente não deu atenção. Pensou que é incrível a desatenção inconsciente que temos nas coisas que não nos interessam ouvir. Como ele não ouviu aquilo!?
Voltou ao trabalho na semana seguinte, mas não conseguia trabalhar. Estava entrando em um espiral descendente. Não sentia mais fome e nem vontade de falar com ela. Não suportava mais olhar nos olhos daquela estranha Maria Inês, e sentir aquele vazio abismal, aquela surreal e quase doce indiferença.
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Duas semanas haviam transcorrido. Maria Inês vagava pela casa por vezes de madrugada. Às vezes ele a ficava espiando escondido para ver o que ela fazia quando não sabia que estava sendo observada. Descobriu que não fazia nada diferente do que fazia quando ele estava por perto, ou quando ele tagarelava olhando-a nos olhos. Tinha sempre as mesmas reações robóticas. Ficava parada ou em pé olhando para frente, por horas a fio. Por vezes baixava os olhos ou o queixo e ficava assim um tempo. Depois, como se respondesse a uma programação, se deslocava para algum outro lugar da casa, e ficava ali por mais minutos ou horas. Não só não falava nem exibia expressões faciais, como também não demonstrava humanidade em seus movimentos. Movia-se estranha e lentamente. Dava passos letárgicos e indolentes; até a cabeça parecia mover em câmera lenta.
Como ele sabia de tanta coisa? Como sabia seu nome? Como soube, naquela manhã ao telefone, que ele queria reviver a mulher? “... recordate que pocas cosas seran como fueran um dia...”. Ah, se ele soubesse! Estava tão arrependido, tão desacorçoado, tão fraco física e mentalmente.
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Havia parado de cuidar da mulher, não suportava mais tê-la e não tê-la daquela forma. Distanciou-se daquele ser. Reparava que ela de alguma maneira se virava por si só. Abria a geladeira e comia coisas que achava por lá. Ia ao banheiro também. Mas não tomava banho e não escovava os dentes. “Talvez no inferno não ensinem estas coisas!”, pensava. Estava enlouquecendo. Evitava-a pela casa e evitava olhá-la em sua catalepsia monstruosa.
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Um mês havia se passado daquela madrugada na cozinha. Exatos trinta dias. Estranhamente acordou de forma espontânea naquela madrugada no mesmo horário em que acordara no dia em que a mulher voltara: 04h15min. Levantou-se e foi à cozinha. Por algum motivo achou que a veria parada na frente geladeira novamente, mas Maria Inês não parecia estar em lugar nenhum.
Voltou e deu com ela em pé na sala, no escuro. Estava bem no meio da sala de frente para a parede atrás do sofá. Por um instante sentiu dó de ela; uma pena intensa que moeu seu coração. Um pranto violento e incontrolável chegou tomando conta dele. Então chorou ali em pé, olhando aquele fantasma que um dia foi sua amada Maria Inês. Quis gritar; gritar e esmurrar a parede de ódio do mundo, da morte, da fatalidade que atingiu sua felicidade, da vida, do velho índio maldito, do amigo do e-mail.
Caminhou até a mulher e a abraçou com força, fazendo-a soltar parte do ar dos pulmões. Abraçado a ela chorava e sacudia o corpo, a autocomiseração seccionava-lhe as entranhas como uma faca quente que atravessa uma barra de manteiga.
Maria Inês permanecia fitando a parede da sala escura, impassível. Ele não soube calcular quanto tempo ficou ali abraçado àquela casca de Maria Inês, àquele holograma que trazia a ele tantas recordações de sua verdadeira mulher. Segurou aquela réplica do rosto lindo que tanto amou entre as mãos e beijou sua boca de borracha morna.
Foi ao quarto e vestiu-se com decisão. Pegou-a pela mão e desceu à garagem da casa. Colocou-a no carro. Seria a primeira vez que Maria Inês sairia de casa depois de ressuscitar. Saiu pela garagem ganhando a rua e disparou cantando os pneus. Nem ao menos se lembrou de dar um simples toque no controle remoto que faria baixar o portão eletrônico.
Por uma fração de segundos teve a impressão que alguém os espiava por detrás da porta de vidro da varanda da sala escura, mas pensou que isso não importava mais. Dirigiu com o pé em baixo por duas horas em direção ao litoral rochoso; haviam construído um sonho de casa ali, e em um fim de tarde de verão, juraram na beira dos rochedos e de frente para o oceano, viver ali os seus últimos dias quando estivessem aposentados, velhos e senis.
Lá naquelas pedras ele havia jogado as cinzas de sua mulher que agora, por algum descalabro ou desconjuntura divina, estava ao seu lado no carro. De repente lembrou-se do cerimonial com a cabra, do sangue e do mantra lúgubre que recitou. Nunca foi religioso, mas não precisava ser para saber que não havia nada de divino naquilo. Não fora com Deus que ele havia feito um pacto, “até por que, Deus não faz pactos”, pensou.
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Chegou à casa da praia já com o dia iluminado e bem nascido. Estacionou o carro na alameda de pedriscos.
Desceu, deu a volta e tirou a mulher pela outra porta; levou-a até o penhasco com aquela sua eterna e espetacular vista. “desejo-lhe a vida!”, lembrou da frase no e-mail e sorriu sarcástico. Tinha desenvolvido uma repulsa irascível daquele absurdo todo. Ele fora fraco e deixara se levar por ilusões efêmeras.
Olhou para aquela estranha e mórbida Maria Inês ao seu lado. Estavam na beiradinha do despenhadeiro agora, lado a lado. Ela mirava com aquele jeito indiferente o horizonte à sua frente e por um instante pareceu a ele que sorriu um sorriso sombrio, mas era bem provável que fosse mera ilusão de sua mente desnorteada. Certamente não havia nenhum sorriso e nenhum sentimento naquele corpo estéril.
Espalmou a mão em suas costas e a empurrou para frente: “Vai meu amor, e perdoe-me por tudo”. A mulher não tentou se segurar ou reagir. Caiu ereta como cai um tronco de árvore que é simplesmente solto; as expressões de seu rosto, serenas e indefiníveis, assim permaneceram enquanto ela tombava para o nada. Caiu sem se debater, apenas suas roupas e seus cabelos negros e longos flanaram furiosamente sob a ação do vento. Podia-se ver os seus olhos abertos a observar coisa alguma enquanto caia. Segundos depois, um baque seco nas pedras junto às ondas que rebentavam espumantes, pôs fim àquela vida morta. Balançou um pouco nos pés, desejava que alguém tivesse misericórdia e o empurrasse. Mas não havia ninguém para fazê-lo.
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....por entre as pontas de couro dos calçados podia avistar o colossal abismo e o mar explodindo contra os rochedos, cem metros abaixo. O rugido leonino do oceano parecia chegar aos seus ouvidos com uma fração de atraso em relação ao que se avistava. Apesar do esforço que a brisa marinha fazia para dissipá-lo, o cheiro denso e morno da maresia já era intenso naquele princípio de manhã de primavera...
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Foi possuído por uma instantânea nostalgia. Lembrou-se de Maria Inês e de tudo o que lhes foi surrupiado. Um chumaço seco de pano pareceu fechar sua garganta e marejar seus olhos. Um dos seus pés escapuliu na lisura de um musgo traiçoeiro finalmente desequilibrando-o. Não lutou para se segurar. No giro penso do corpo em direção ao vazio, ainda teve tempo de avistar a casa fechada com suas cortinas serradas e que lhe trazia tão boas recordações. Aquela casa que nunca mais seria aberta para o vento ou para a vida.
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Cesar Cruz
Mar/ 08
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6 comentários:

Anônimo disse...

Está ficando muito bom seu blog, Cesinha!
André
18.3.08

Anônimo disse...

Caro Cesar,

Agora sim, parabéns pelo espaço.
Seus textos merecem ser compartilhados com outras pessoas.

Sucesso, do amigo e admirador.

Claudio
18.3.08

Anônimo disse...

Oi Cesar, que bom que vc juntou tudo em um blog!
Muito legal!
So nao gostei da foto...vc ta muito serio!!! quero uma foto com um sorriso!
Beijo

Elizete - Alemanha
19.3.08

Anônimo disse...

Fala Pai!

Muito bom o blog, sem falar em seus contos um tanto quanto malucos. Cara me diz onde tu tira tanta imaginação assim pra escrever?...rs

De qualquer forma, sabe que sou um mero viciado em lê-los e confesso que adoro.

Parabéns e continue escrevendo sempre. Para você e para nós!

Um abraço!

Alex
19.3.08

Anônimo disse...

MONICA disse...
PARABÉNS! MUITO LEGAL
20.3.08

Anônimo disse...

Horripilante!!
Julio