As minhas vinganças

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Venho ano após ano lapidando-me como ser humano, a ponto de hoje ter me transformado quase que em um cara civilizado. Mas o desejo de realizar pequenas vinganças sempre foi presente no lado oculto do meu ser. Muitas vezes esta sede emergiu por pura mágoa do que fizeram (ou achei que fizeram) comigo.
A verdade é que sempre fui um rinoceronte. Um grosso, um Viking, um Neandertal. Seres como eu são mesmo propensos a sentimentos baixos e atitudes pequenas como estas. Frente a esta verdade, vou lhes contar como e porque em certos momentos, pratiquei e pratico a vingança branca (aquela que não é tão malvada assim), relatando algumas passagens da minha vida.
Fui um adolescente feio. Não nos traços, creio, mas pela conjunção de infelicidades como: espinhas purulentas, cabelos compridos de roqueiro e poucos banhos. Sendo assim, eu era mesmo um sujeitinho pouco interessante aos olhos das beldades adolescentes. O resultado disso é que garota nenhuma queria nada comigo até os meus 16 anos.
Desenvolvi então um ódio latente e hermético de certo tipo de menina. Em especial aquelas mais moderninhas, filhinhas de papai... Geralmente, e para o meu desespero, as miseravelmente mais bonitas! Elas nem me olhavam, só tinham olhos para aqueles surfistinhas (maricas!) cheirosos, bronzeados pelo sol e com roupinhas coloridas da moda New Wave da década de 1980. O que iriam querer com um roqueiro fétido, seboso e todo vestido de preto como eu? Além de tudo eu era baixinho e branquelo... Ô tristeza...
Então um dia caiu a minha ficha. Me liguei, como dizíamos na época. Olhei-me no espelho e vi toda a verdade. Eu não era propriamente feio, mas aquele estilo underground estava acabando com minhas possibilidades.
Comecei o processo de mudança. Cortei o cabelo, passei a lavar a cabeça com xampu (deixando o sabonete só para o corpo), fui num dermatologista tratar as acnes e a caspa e mudei um pouco meu guarda roupa... Traí o movimento heavy metal, mas pelo menos melhorei a olhos vistos!Cheguei aos 17 anos até que bem bonitinho.Voltei a praticar karate, que eu havia largado, e entrei numa academia para fazer musculação. Elas não gostavam dos fortões? Eu seria um deles então!
Treinei a ponto de me tornar bom em ambas as modalidades. Praticava com afinco dia após dia, mês após mês, ano após ano. Dia de frio, de chuva, com gripe, machucado. Não queria nem saber. Treinava e treinava pesado. A raiva e a mágoa eram o meu combustível. Resultado: ganhei alguns bons quilos de músculo em 10 anos. E no karate fui à faixa preta em apenas 6 anos; logo virei atleta de competição nesta modalidade, participei de campeonatos regionais e estaduais e ganhei um monte de medalhas. Até os grandalhões tinham medo de lutar comigo, diziam que onde eu batia doía, reclamavam que até as minhas defesas machucavam. Cheguei a ter 67cm de circunferência nas coxas e meu chute frontal (clássico no karate) dobrava o saco de areia de 100kg sem muita dificuldade. Dava até medo.
Então, por fim, consegui. Passei a ser temido e respeitado pelos garotos e desejado pelas garotas. Queria ver agora quem agora me zombaria de baixinho, espinhudo e seboso! Mas isso não bastava. Existia dentro de mim um ódio armazenado, um sentimento de vingança latente. Eu pensava: “Ah... agora vocês vêem me elogiar, me bajular!”. Minha resposta era sempre a ironia. Quando me diziam: “puxa, você é forte!” ou “Nossa! Como você luta bem!” eu simplesmente respondia com desdém, sarcasmo ou pouco caso. Mas aquilo no fundo era uma vingança! Deleitava-me por desprezá-los!As garotas mais bonitas, perfumadas e moderninhas, que tanto me menosprezaram, eram agora minhas vítimas. Às vezes eu não resistia e dava uma breve namorada com uma delas, mas logo largava a moçoila sem muitas explicações. Por pura maldade. Chegava a preferir as feias para ofender as bonitas, tal era a minha mágoa. Era um recalcado. Uma grande besteira claro! Pois nem eram as mesmas. Anos haviam se passado... Mas a minha vingança não era mesmo pessoal, era contra todo um modus vivendi, uma maneira de agir que oprime e rejeita aquele que não se ajusta a um modelo. E haviam feito isso comigo. E eu não perdoava. E assim fui me vingando por aí.
A partir de 1996 eu comecei a conciliar as aulas na academia (que passei a dar só à noite), com o trabalho de vendedor de anúncios de uma revista.Então durante o dia eu era outro Cesar.
Usava terno e gravata e visitava empresas que poderiam vir a anunciar. Ali, naquele novo mundo, eu não era nada. Ninguém me conhecia e eu não tinha a menor importância. Passei a ser apenas um vendedor. E como tal, voltei a ser desprezado e escarnecido; mas de forma dissimulada desta vez, como fazem os adultos.
Sentia-me novamente o cocô do cavalo do bandido. Exatamente como aquele adolescente baixinho, engordurado e cheio de espinhas que eu havia sido há 10 anos.
A profissão de vendedor se revelou cruel: uma profissão sem ser. É como ser prostituta. Não há desrespeito explícito por parte das pessoas, mas também não há respeito. Você é tratado como alguém que após ter fracassado, foi vender coisas para os outros. O desprezo é subliminar e velado. Porém duro.
Comecei a observar que de fato, os vendedores de uma certa forma mereciam tal tratamento. Eram no geral pouco profissionais mesmo, sem método, sem preparo, sem vontade de evoluir; iam desta forma reforçando por aí este senso-comum.A imensa maioria não se esmerava para se vestir adequadamente, muito menos pretendiam falar ou escrever corretamente na língua portuguesa. Também não sabiam se portar, nem sabiam a hora de abrir e fechar a boca... Enfim, eram uma lastima como profissionais!
Passei então a detestar quando me chamavam de vendedor. Uma nova ferida se abria na minha auto-estima.
Por vergonha destas máculas da profissão, ainda hoje, vendedores em geral escolhem apelidos exóticos para sua atividade de vender. Ninguém quer ser chamado de “vendedor”.
Alguns se dizem “Assessores comerciais” outros “Representantes”, há os que prefiram “Consultor” ou “Gerente de contas” (sic) ou o ridículo “Empresário”; estes últimos justificam-se dizendo que tem sua própria empresa aberta! Um vexame.
Então eu me autobatizaria de quê, afinal? Vendedor? Não! Isso nunca! E ai daquele que me chamasse assim! Então, seguindo a maré do pessoal do departamento lá da empresa, também me auto-intitulei “publicitário”. Afinal, lidávamos com publicidade! Veja só que coisa mais bonita, sublime! Assim, num passe de mágicas deixávamos todos de ser vendedores!
Mas a verdade é que isso não adiantava nada, o preconceito perseguia e insistia em alfinetar a minha auto-estima.
Passei a freqüentar eventos importantes, reuniões, jantares com clientes, cocktails. Mas sempre havia a hora em que puxavam a minha escada e me derrubavam do alto da minha pompa: “Fulano, este aqui é o Cesar que lhe falei, o vendedor da revista”. Eu queria morrer. Estava definitivamente revoltado com este estigma.
Na época eu já havia começado e parado algumas vezes a faculdade. Então na falta de uma formação completa, não podia nem ao menos me sair bem como muitos vendedores amigos meus que diziam: “sou administrador”, “sou jornalista” ou “sou advogado”. Mas e eu? O que eu poderia ser? Eu era mesmo somente um vendedor... Ai que dor!
Anos depois sai da revista e fui trabalhar associado com um cliente que virou meu amigo. Precisei então abrir a minha própria empresa. De repente me vi tentado a me rebatizar profissionalmente como “empresário”. Mas não o fiz, já mais maduro na época, achei que seria um horror.
Em determinado momento, me insurgi contra aquilo tudo! Passaram-se os anos, a minha maturidade já não permitia vinganças tão sanguinárias com antes. Mas havia em mim alguma sede... Ah, havia! Queria derramar sangue, nem que fosse só umas gotinhas!
Vendo como era ridícula toda aquela farsa dos vendedores, optei então por preparar uma vingança diferente. Uma vingança às avessas! A idéia era ir no contra-fluxo de toda a categoria, assumindo profissão e título. E assim fiz. E ao assumir com coragem e de peito aberto, o mundo se rendeu. A verdade veio à tona. Livre da nuvem de preconceitos e peitando todos como que a afirmar: “Sou vendedor mesmo, e aí?”, percebi que ali estava uma bela profissão, que apesar de não contar com uma cadeira na academia, requereria muito estudo, pesquisa e desenvolvimento pessoal para ser compreendida e dominada. E justamente por não caracterizar uma disciplina oficial é que a sensibilidade de quem se propõe a desbravá-la deve ser muito apurada. Enfim, era uma bela causa pela qual lutar! Mas o desafio era grande. Onde achar estudo sério e de qualidade? Difícil, pois talvez tal material nem existisse.
Nos primeiros passos desta luta, entendi que se minha opção era por assumir, teria que me agigantar! Crescer, ser bom de verdade! Ficou claro que o primeiro passo seria falar e escrever de forma impecável. Lá fui eu. Virei um leitor voraz. Li de tudo: clássicos brasileiros, livros técnicos, auto-ajuda, romances, best sellers, livros sobre administração, gestão, psicologia, biografia de líderes empresariais, pensadores europeus, filósofos, cronistas e porcarias de todo o tipo. Enquanto lia, treinava a mente, o senso crítico, a auto-análise, a astúcia, a escrita e a fala. Aprendi também que seria importante me manter atualizado sobre a política e a economia do país. Então passei a ler jornais, revistas e a ouvir rádio. Mas ainda não bastava. Precisaria aprender a me portar adequadamente em qualquer lugar, saber deixar as pessoas à vontade, desenvolver bom senso, humor na medida, perspicácia, sensibilidade, educação refinada. Fui à luta de novo. Assisti a palestras, fiz cursos... e por fim, me transformei num ávido observador do comportamento dos poucos e exímios vendedores que conhecia. Aprendi mais e mais. E continuo a aprender. Graças ao despreparo da categoria, hoje acabo me destacando. Em terra de cego...
Agora, mais maduro e sereno, me vingo de forma mais nobre, sutil e producente. Vingo-me, mostrando de forma silenciosa que as pessoas não precisam ser hipócritas. Para isso, uso provocativo (e orgulhoso) o título da profissão que aprendi a amar e respeitar. Vingo-me com minha inesperada competência; vingo-me mostrando que um vendedor pode ser mais capaz, articulado, culto e educado que muito engenheiro, doutor ou Phd por aí. E já quero pedir de antemão que me internem caso algum dia eu me rebatize profissionalmente! E é justamente aqui que reside a minha vingança final: serei vendedor e assim me intitularei para sempre! Para a indignação de todos os fariseus que acreditam que um vendedor é apenas um fracassado que não achou mais nada pra fazer!
Ah! Adoro provocar espanto nos hipócritas que maldosamente alimentam este pobre paradigma!Adoro surpreender os pusilânimes e os soberbos com minha audácia. Adoro demolir preconceitos e prosápias com a minha educação, adequação e (quase) refinamento. Adoro por fim, quando um destes malvados, desejando me deixar sem graça em público, indaga sobre minha ocupação. Invariavelmente ouve a minha resposta convicta e despudorada: “sou vendedor, amigo!”, e orgulhoso e vingativo frente ao espanto, me delicio vendo o sangue derramar!
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. Cesar Cruz
Abril/ 07
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Um comentário:

Anônimo disse...

Sanguinário !!!!

hehehe...

Abraço

G

26.4.08