O reflexo

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Almoçaram a especialidade da casa: macarronada à bolonhesa acompanhada de uma garrafa de tinto. Barrigas cheias, a tarde morna de domingo convidava a uma sesta. Adelaide dormia seu cochilo merecido, espichada no sofá com os pés sobre o colo de Benvindo, que folheava uma revista cuidando para que o farfalhar das páginas não acordasse a mulher. Estavam sós. Maria Paula estava numa festinha na escola.
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Fazia calor e Benvindo sentia um certo mal-estar. Resolveu banhar-se. Levantou do sofá cuidadosamente e, com grande perícia, retirou os pés da mulher de seu colo e depositou-os sobre uma almofada. Foi para o chuveiro.
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Vinte minutos depois, fechou a água, correu a cortina plástica e buscou com a mão a toalha no gancho. Não estava lá. Esquecera de pegá-la no varal. Pensou que se atravessasse a casa nu e molhado ensoparia todo o carpete e apanharia uma constipação. O único jeito seria acordá-la e pedir-lhe que trouxesse a toalha.
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- Dê! - gritou de dentro do cubículo do chuveiro.
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Não recebendo resposta, gritou mais duas vezes, a última com mais vigor. A mulher parecia dormir pesadamente. Enxugou-se mal-e-mal com a toalhinha de rosto e dirigiu-se para o quarto a fim de se vestir. De passagem, olhou para a sala e surpreendeu o sofá vazio.
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Colocou a roupa e foi à cozinha; depois à área de serviços; depois ao quintal. Adelaide parecia não estar em lugar nenhum. Estranhou. Ela não sairia sem lhe dizer nada. Olhou pela janela da sala e o carro não estava na vaga. No seu lugar havia uma montoeira de coisas que subiam quase até as telhas de fibrocimento da cobertura: caixas de papelão, tapetes enrolados, bicicletas velhas, pneus, pilhas de telhas, enferrujados botijões de gás, fardos volumosos de jornal presos por barbante, além de uma geladeira antiga sem a porta. "Ela saiu de carro sem me avisar!" - pensou alarmado.
Correu ao telefone e discou para a mãe. Atenderam:
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- Alô!
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- Mãe, sou eu! A Adelaide foi praí?
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- Pai? É o senhor?
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- Oh, desculpe-me. Preciso falar com minha mãe, Dona Diolina, é o filho dela...
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Seguindo exatamente a recomendação médica, a moça interrompeu o homem:
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- Sou eu, pai, Maria Paula. Acalme-se e me ouça: a vó morreu faz 23 anos e...
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O homem explodiu em fúria:
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- Seja lá quem diabos você for! Chame minha mãe imediatamente!
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Maria Paula, treinada, inverteu a estratégia:
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- Sim, senhor, claro... só que ela está no banheiro. Posso pedir que ligue de volta daqui a pouco?
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- Pois diga a ela que estou aguardando! Minha mulher saiu de carro sem me avisar! Estou muito preocupado!
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- Claro, claro... Ela já, já ligará de volta!
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Benvindo bateu o telefone com força, sem agradecer, aborrecido com a impertinência da mulher. "Deve ser uma das vizinhas inoportunas que não saem da casa de mamãe" - pensou.
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Voltou ao quarto, sentou-se na beirada da cama, pegou um par de meias na gaveta baixa da cômoda, vestiu-as e calçou os chinelos. Começava a sentir frio. Ergueu-se com dificuldade; suas costas doeram e seus joelhos rangeram. Abriu o armário e puxou uma malha do cabide.
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Enquanto a vestia, reparou que, na parte interna da porta do móvel, havia uma imagem emoldurada e afixada por quatro parafusos. "Uma linda fotografia artística!" - pensou, efusivo.
Ficou olhando o retrato, admirado com sua perfeição. A foto exibia um velho ancião, recurvado, o rosto com os sulcos profundos, característicos dos septuagenários; os cabelos brancos ralos sobre a cabeça, as manchas na pele, os olhos amarelos enterrados nas pálpebras moles.
"Quem seria ele?" - pensou. Logo em seguida alegrou-se:
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- Ah, Adelaide e suas surpresas! - balbuciou em voz baixa, sorrindo. O velho da foto pareceu sorrir-lhe de volta.
Adelaide sabia que ele adorava fotografias. Possivelmente a escondera ali para presenteá-lo posteriormente. Decidiu fingir-se de bobo para não estragar a surpresa.
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Maria Paula pôs o telefone na base, saiu à porta e disse ao marido que lavava o carro na calçada:
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- Amor, precisamos ir até o papai agora mesmo. Aconteceu aquilo de novo. Definitivamente, ele não tem mais condições de viver só.
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Benvindo fechou com cuidado a porta do armário e arrastou os chinelos pelo corredor. Sorria marotamente.
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- De-eê! Onde você está, mocinha arteira? Pensa que se esconde de mim? Vou te achar!
Compenetrado em seu folguedo onírico, o velho avançava em direção à sala, cuidadoso, pé ante pé, como um garoto que brinca de esconder.

Cesar Cruz
Setembro 2008
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10 comentários:

Anônimo disse...

Oi, César,

Muito, muito bom, mesmo. Incrível... Adorei!!!

Beijinhos na cara metade e na Maria Luiza

Carolie
5.9.08

Anônimo disse...

Surpreendente César
5.9.08

Anônimo disse...

Marcelo Lopes disse...
Olá César,

Cara, o mais interessante nos seus textos é que a gente começa a ler sem fazer idéia do que vem pela frente...muito interessante.

Abs e manda mais!

Marcelo

Anônimo disse...

Anônimo disse...
oi
Cesar
adorei
beijos
tia
6.9.08

Anônimo disse...

Oi, meu amigo.

Obrigado pela deferência de colocar meu texto na seção "os textos que eu queria ter escrito" do seu blogue e pelas suas palavras. Eu me senti verdadeiramente homenageado.
Sempre é muito bom ganhar um amigo, especialmente um como você.

Grande abraço,
Gabriel

Anônimo disse...

Oi Cesar,

Muito bom. Curto e surpreendente. Parabéns!! Você está cada dia melhor. Ah! Você reparou que li no mesmo dia?

beijos

martha
8.9.08

Anônimo disse...

Aproveitei a hora do almoço para ler os seus contos.
Sua imaginação me impressiona.
Seus contos estão ótimos!
Parabéns!

beijos
Tânia
8.9.08

Anônimo disse...

DÚCA!!

abzz
Nelson

Anônimo disse...

Muito bom este conto, César! Parabéns pela criatividade. Emocionante!
Márcia
9.9.08

Anônimo disse...

Nossa, cara! fiquei sensibiliada...
Excelente mesmo.
Telma
24.9.08