O branco


Lamento, mas pelo jeito acabou. Secou de vez. Tudo o que eu tinha pra escrever já escrevi. Vou desmontar este blog, pedir desculpas aos amigos que me leem e esquecer esse negócio de escrever. Minha mente hoje é uma página do Word em branco, com um cursor piscando no alto à esquerda, indefinidamente.
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Este mal, que é o terror de todo o escritor, definitivamente me atingiu. A seca mental, o branco, o nada, o vazio, o vácuo criativo. Esvaíram-se todas as minhas idéias. Todas. Nada me ocorre e, quando ocorre, surge em trechos pálidos, solitários e desprovidos de liga, fragmentados... Enfim, nada que possa se transformar num bom causo minimamente interessante para contar às pessoas.

O problema é que tenho que enviar as crônicas ao jornal, compromisso é compromisso! Para piorar, quando estou em total desespero, chega um e-mail da Ângela, redatora do Jornal do Cambuci: “Cesar, cadê a crônica? Tenho que fechar a edição!”.
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Ontem por volta das 19h eu tomava banho quando, tchan!, me surgiu uma idéia. Depois de tantos dias sem me ocorrer nada que prestasse, lá estava ela, linda, chegando de repente enquanto eu me ensaboava sob o chuveiro; então ela foi ganhando corpo, consistência. Agora já era mais do que uma idéia, era uma crônica prontinha, esperando apenas para ser redigida. Então pensei: “vou sair do chuveiro peladão mesmo, correr pra sala, sentar pingolejante na cadeira giratória e, entre gotas e cliques, registrarei as linhas principais, depois será só rechear o bolo".
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Quando soltei o trinco da porta de vidro do box para sair, lembrei-me de algo importante. Havia um porém, eu estava com a Michele no chuveiro. E ela, pobrezinha, sentadinha junto aos meus pés, em sua banheira plástica, semi-ensaboada e distraída com seus brinquedos flutuantes, nem sabia das minhas intenções.
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Como sair e deixá-la ali? E o perigo de ela tombar para o lado e bater a cabeça na parede, ou se afogar? Apesar de que eu poderia fazer isso tudo em uma carreira bem ligeira e voltar a tempo, mas, pensando bem, não daria para ser tão rápido assim... além do mais ela só tem um ano e... Bem, contar com a Vanessa estava descartado; ela tinha saído e ainda levaria uns minutos para voltar. Olhei pra Michele e especulei:
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- Filha, você fica boazinha enquanto o papai vai ali e vem logo? - Foi só eu dizer isso que ela riu golpeando a água com os bracinhos. Não sei qual foi a graça, mas a euforia a fez perder o equilíbrio e dar com a cabeça nos azulejos. Desisti de sair.
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Me enxaguei e, com grande esforço procurava não esquecer aquela ótima idéia, mas... Como era mesmo aquela parte em que o cara acena para o taxi? Não, não... não era bem isso... Havia ali uma palavra exata, uma composição específica e...
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Levantei a Michele da banheira. Ela começou a chorar. Frio, acho. Isso é normal, ela detesta que o banho acabe. Com o chuveirinho, dei uma última enxaguada nela e em mim, fechei a torneira enquanto tentava segurá-la como podia, pois além de chorar, ela se debatia contrariada, em grande rebelião.
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Abri o box, apanhei a toalha na argola e joguei por cima de nós dois. Sentei-a na bancada da pia e comecei a enxugá-la. Ela parou de chorar e começou a rir. Achou que agora estávamos brincando de esfrega-toalha-veloz. Subitamente consegui recordar a forma como se daria a construção da frase. Me senti radiante, acho que até sorri, pois a Michele disse-me algo em sua linguagem peculiar e ficou me encarando. Deveria ser uma pergunta.
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- Isso mesmo, filhinha, vamos nos secar pra não pegar gripe e pôr roupinha bem gostosa! – respondi.
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De repente senti me fugir outra passagem. Essa compunha o meio de campo da história. Sem ela eu não conseguiria dar a liga para o final. “Puxa, como era mesmo aquele trecho?” Usando apenas uma mão, sequei-me como pude, enquanto com a outra segurava a Michele para que ela não caísse da pia.
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Enrolei-a e fomos pro quarto. “Cadê a Vanessa que não chega?”. Subitamente me dei conta de que aquela crônica genial, na verdade era fraquinha, fraquinha, faltavam pedaços. Quase sem pé e sem cabeça. “Ué? Foi isso que eu tinha achado tão brilhante há apenas alguns minutos? Será que o vapor do chuveiro distorceu meu senso crítico?”. Não, não... Na verdade eu a estava perdendo, ela me escapava, era isso. Esvaia-se por entre meus dedos como a água do banho!
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Deitei-a na cama e apanhei o tubo de pomada contra assaduras sobre a cômoda. “Agora ponho a fralda nela, uma roupinha e a solto no chão da sala com seus brinquedos e corro pro computador!” - planejei.
“Cadê a fralda?”. Assim que abri a gaveta para pegá-la e me voltei, uma surpresa: Michele tinha feito xixi. E sem o protetor plástico que eu deveria ter colocado sob seus quadris e não pus.
Arranquei rapidamente a toalha que trazia enrolada na cintura e apertei-a contra a poça que se formava. Uma parte foi absorvida pela toalha, outra pelo colchão...
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Michele começou a chorar assustada com a minha reação. “Cadê a Vanessa que não chega, meu Deus?!”. Nisso a porta da rua se abriu e ela entrou. Veio direto ao quarto e, vendo-me naquela enrascada, apressou-se a me acudir.
Não escapei da bronca, afinal, como pude esquecer o protetor?
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Michele voltou com a mamãe pro chuveiro pra brincar um pouco mais.
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Quanto a mim, sentei-me na cadeira giratória de frente para a reluzente página vazia do Word. Ela ficou ali me olhando, cínica como nunca, com seu incansável cursor piscando imóvel no alto à esquerda. E pelo jeito, indefinidamente.
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Cesar Cruz
Dez/ 2008
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9 comentários:

George Saguia disse...

hahahahahahahahaha... adorei!

um abraço

G

Anônimo disse...

É MEU AMIGO.....VIDA DE PAIS É ISSO MESMO!
NUNCA MAIS DORMIR SOSSEGADO, UM SUSPIRO MAIS FORTE E PRONTO... BANHO TRANQUILO NEM PENSAR...
E A HORA DO ALMOÇO ENTÃO, SE NÃO BASTASSE A COMIDA GELADA ELAS COMEM JUNTO COM VOCÊ.
REALMENTE É UMA VIDA MUITO AGITADA E ENGRAÇADA.
NOSSA VIDA APARTIR DELAS É UMA VIDA MAIS COR DE ROSA COM MUITO MAIS SABOR.
FERNANDA BARBOSA

Manuela Malachias disse...

kkkk Ai, muito boa...
Ainda bem que aquela crônica que você pensou não saiu! Rendeu uma muito melhor!
Não esquece o protetor!!

Anônimo disse...

Oi, Cesar, Vanessa e Michele

Como sempre, gosto muito de tudo o que você escreve. E não é porque sou uma tia coruja, não.
Você tem estilo, boa redação, etc.

E como estão indo de Papai e Mamãe frescos ?

Gostei de ver a Michele no seu blog. ela é mesmo lindinha ! Que Deus abençoe muito vocês.

Suas fotos estão guardadas em arquivo e já comprei o papel de fotos para imprimi-las.
Vamos ver se me saio bem. Se não, levo numa loja especializada, pois ainda ácho que nada como uma velha e boa foto, não virtual...

beijos aos três
Carolie

Anônimo disse...

Oi meu amigo,

Muito boa. Eu sabia que a Michelle seria sua musa, sua inspiração. Passei por isso com m inha netinha. É uma delícia.
Abraço
Gabriel

Anônimo disse...

Risos.

Impressionante como uma banho com espuma, água e amor rende uma história bonita. Não é?

Bons tempos dos banhos com meu pai. E ele no chuveiro era bemmm mais divertido do que minha mãe. Sei que a Michele tb vai pensar isso (não conta pra Vanessa, rs)... aliás, quem era a única pessoa que brincava de "toalha-veloz" comigo? O PAI! O resto simplesmente me enxugava. hahahaha

Beijos MARA RUZZA

Mellany Cedeno disse...

aiaiai!!! já aconteceu isso comigo!!
Estava dando banho na minha irmãzinha... hahuauhauhahu
como é... é... triste senir esse branco..
muito bom!!!

Anônimo disse...

Oi César,

Muito bom, isso é só o começo.....
A Michele chegou para preencher e completar tudo, inclusive espaços para suas idéias...rsrsrsss.
Acho que a intensão é mesmo essa....tem que escrever só sobre ela...acho que acaba de perder o BLOG....!!!!!rsrsrsrssss.

Bjs.

Vovó Márcia

Anônimo disse...

Ah! Li este seu saboroso texto... Um crônica plena de humor. Só não escrevi antes por causa dos dias tumultuados na escola. Provas, notas, alunos correndo atrás de nós, entrega de diários para a secretarias etc.

Mas agora estou em férias e, em janeiro, vou pensar na continuidade das Libras.

Aproveito para desejar a vocês três um belo Natal e um Ano Novo com toda merecida paz.

Abraço,

Carlos