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São 23h20. Debruçado sobre a mesa de jantar, Paulo faz as contas do mês usando uma pequena calculadora. Espalhados a sua frente há papéis, carnês e canetas. Junto ao vaso de flores sintéticas, que ocupa o centro da mesa, há um prato com um restinho de macarrão e molho de tomate secos e um copo suado com refrigerante, que transpira deixando uma rodela sobre o tampo de madeira ensebado.
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- Você fez o jogo que te pedi, Marilza?
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Marilza veste calcinha e camiseta velha e está esparramada no velho sofá azul, que agora é lilás graças à capa de tecido que o recobre escondendo os furos e o ruço do tecido.
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- Fiz... Jogo há tanto tempo nesses números e nunca ganhei um tostão!
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- Ah, mas quem sabe a gente ganha? Só assim sairemos desta merda... Já pensou, ganhar os dezesseis milhões acumulados, só a gente?
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- Putz... nem fala! Acertaria a minha vida.
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- Acertaria? Você deve estar brincando! Tem ideia do que são dezesseis milhões, Marilza?
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- Muito, né?
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- Muito? É uma puta grana! Um dinheirão!
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- Pára de gritar que vai acabar acordando meu filho!
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- Desculpa! É que às vezes fico pensando em como seria ganharmos um dinheirão assim... A gente poderia comprar um bom carro com bancos de couro e uma casona pra trazer a mamãe pra morar com a gente.
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- Ficou doido, Paulo? Pra que pôr a velha aqui dentro de casa? Pra encher o meu saco?
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- Precisa falar assim da mamãe? Ta bom, eu compraria uma casa só prá ela, aqui perto da gente e...
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- Aqui perto? Você me diz que é uma baita grana e agora quer continuar aqui neste bairro nojento? E ainda com a sua mãe do lado, aporrinhando?
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Silêncio.
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Marilza troca o canal da TV.
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Paulo volta às contas, resignado e magoado com o jeito como a mulher se referiu à sua mãe. Marilza murmura, pensando alto:
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– Com esse dinheirão bem que eu podia ajudar o Valtinho... Eu acho que vou dar um milhão na mão dele e dizer: vai, meu filho, seja feliz!
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Hora da vingança.
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- Ficou doida? Dar um milhão na mão daquele vagabundo do seu irmão? Eu vou é dar uns 500 mil pro Goroba, esse sim, amigo fiel de tantos anos...
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- O quê?! Eu não vou deixar você dar nem um tostão praquele maconheiro!
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Marilza salta irritada do sofá e pega acintosamente o prato seco e o copo que estavam em frente ao marido e vai para a cozinha lavar a louça. Ele vai atrás, enfezado.
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- Ei! Eu ainda estava tomando o guaraná!
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- Vá pro inferno, Paulo! – ela explode, virando-se com o frasco de detergente na mão - Eu não quero mais ouvir você dizer que vai dar dinheiro na mão desses imprestáveis dos seus amigos!
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- Ahaha! Só me faltava essa! E o seu irmão? Por acaso ele é um grande trabalhador? Aquilo é um lixo de gente, Marilza!
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– Que se dane a sua opinião! Eu cuido da minha família como quiser!
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Dizendo isso, apanha um copo na pilha de louças fétidas e, descontrolada, atira na direção de Paulo, que se abaixa a tempo. O ruído ecoa pela casa e os cacos chovem no chão.
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- Ta maluca? Podia ter me matado!
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- Eu te detesto, seu idiota!
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- Idiota é você! E da próxima vez, lave essa boca antes de falar da mamãe, sua bruxa!
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Uma choradeira infantil faz agora os dois estancarem em silêncio.
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- Ta vendo, acordou o moleque!
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- Moleque? É sempre assim que você se refere ao Julinho! Por que você não vai embora duma vez e me deixa em paz com meu filho?
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- Você devia voltar com aquele bêbado do pai dele, isto sim.
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- Some daqui, seu nojento!
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Um prato sujo voa e estoura contra a parede, bem na altura onde estava a cabeça do Paulo, que se esquiva rapidamente pra trás do batente.
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O homem se arrisca a colocar novamente a cabeça pra dentro da cozinha e, agora furioso, sentencia:
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- Quer saber? Vou fazer o que já deveria ter feito há tempos! Vou-me embora!
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Passa a mão nas chaves da Variant que estavam sobre a geladeira e destranca a porta.
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O choro abafado do menino fechado no quarto, somado à gritaria e ao ruído dos copos que se espatifaram, acorda a vizinhança. Ruídos de janelas se abrindo. Um grito rasga a noite: “Silêncio, filhos-da-puta!”
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- Seu cachorro! Aonde você pensa que vai com o meu carro?
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- Depois eu te devolvo essa porcaria! Vou te dar a metade de todo o dinheiro, pode ficar tranquila...
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- Eu sei bem quanto é a metade de dezesseis milhões, ouviu bem?!
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Paulo bate violentamente a porta da casa, entra no carro e vai passar a noite em um bom hotel, pois dinheiro não é mais problema para ele.
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Agora se sentia como um desses cobiçados solteirões que aparecem na Caras, abraçados à loiras enormes. Possuía oito milhões, só dele, esperando para serem torrados.
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Marilza ri descontroladamente na cozinha, em meio aos cacos esparramados pelo chão e ao som dos berros desesperados do menino esquecido. Ri, pois se dá conta de que o bilhete do jogo está na sua bolsa, sobre o sofá da sala.
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“A besta do Paulo não vai ver nem um centavo desse dinheirão, nenhunzinho!” - pensa ela, e escorrega pela parede, às gargalhadas, até se agachar nos ladrilhos sujos da cozinha escura.
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Cesar Cruz
Mar 2009
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10 comentários:
olá cesar,
desta vez li rapididinho.
gostei bastante, muito engraçado. o final é muito bom. é aquela coisa, o cara cresce o olho, briga e ainda nem ganhou.
beijos,
martha
Os caras brigaram antes do sorteio. Que fé, hein? Ficou legal.
Ficaram claras as posições de cada um. Deve ter sido por seu egoísmo que a mulher ficou sozinha com filho já uma primeira vez. O mais triste, ou absurdo, é que tomaram decisões "na vida real" baseados numa possibilidade muito remota, no fundo uma quase improbabilidade. É a falta de contato com a realidade, característica encontrável na maioria das pessoas, desgraçadamente. Gostei. Curto e grosso.
Abraço
Gabriel
Conflitos familiares sempre rendem boas histórias, né? O que mais gosto nos seus textos é o ingrediente do absurdo. E voce poe o absurdo escondido no meio do cotidiano, do dia a dia normal, muito bom!
Neste conto achei o absurdo bem escondidinho por detrás de toda essa loucura de copos voadores e do egoísmo humano.
Gente, cade o bilhete premiado? Piraram na ilusão! ararará! perfeito.
bjocas da leitora fiel,
Cristina
Vila Mariana
aqui de Sampa/Sampa
ADOREEEEEEI!!! Muito bom! eu duvido, mas duuuuvi-de-o-dó como não há ninguém que nunca fez as contas imaginando ter ganhado na mega.
Quem ajudaria, quem não ajudaria e sempre dá briga. Não concordo em ajudar seu irmão, amigo... se continuar assim, ajudando todo mundo não vai sobrar porcaria nenhuma pra gente...HAHAHA, ou, tenho certeza q se vc ganhar vc vai me dar um pé na bunda e vai sair com a mulherada por aí!!! .....rs. Bárbaro seu conto!!!
bjosss
Silvia
Cara, muito bom este conto! Eu sempre fico fazendo planos com a fortuna que não ganhei! Toda hora faço isso! Casa pra um, carro pra outro, ap na praia e barco pra mim etc, etc!
Mas entrei aqui para te parabenizar pela excelente história das cores que acabei de ler na Gazetinha aqui do Ipira. Perfeito meu chapa! As mulheres sempre vem com esse papo de caju, rubro, anil, e o diabo a quatro! Não dá pra entender nada!
abraço!
Murilo Reis
Vila Monumento
Eu, hein??!!
Por isso que eu já nem jogo! Vai que eu dou o azar de ganhar, olha só que confusão!
Muito bom!
Beijo!
Yeah
César! Quer dizer q o Paulo é o bonzinho e generoso e a Marilza a malvada??? Tá injusto isso meu bem! rssssss. Nós mulheres não somos tão egoistas assim! Já chega a historia das cores!rssss
bjocas
Darci
Adorei, me prendeu a atenção.
É o retrato da miséria, do desamor.
Um ótimo sábado pra ti.
Helena Lescano
Querido amigo avassalador...Cesar.
O que mais chamou minha atenção é o simples fato de tudo se passar no terreno do sonho, quase delirio... nem chega a ser um hipotese ...
De fato, todas as semanas vejo pessoas fantasiando sobre o que fazer com um dinheiro que ainda não existe para elas...coisa doida, né!
P.s:
Vim aqui pra dizer que psicologo não é "mago Merlim" nem bruxa memeia kkkkkk... não advinhamos numeros de loteria e nem prevemos se vai ser aprovado no concurso para emprego federal... mas podemos ajudar voce a encontrar com alguem que conhece a muito tempo mas não tem como encarar.
Gostaria de fazer parceria conosco?
mande um email para avassaladorasrio@gmail.com
Muito com mesmo, a primeira vez que entro, li e adorei, quanta briga por algo que não existe ainda.
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