Rim com brók



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Certa vez, há muitos anos, quando eu trabalhava como representante de uma revista, fui atender ao chamado de um cliente lá nos cafundós de Itaquaquecetuba. Fui perguntando, perguntando, até que cheguei a uma rua de terra, com casas pobres, moleques empinando pipas e botecos ilegais, com indivíduos sem camisa jogando sinuca e tomando canjibrinas altamente combustíveis às nove horas da manhã.
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A ficha do cliente dizia se tratar de uma empresa prestadora de serviços de pintura. Quando cheguei ao endereço, tudo ficou claro. A tal empresa era, na verdade, marido e mulher tocando o próprio negócio, precariamente, de dentro de casa. Os ativos da firma pareciam ser um telefone, um aparelho de fax e uma Variant azul que vi estacionada na frente da casa, com a inscrição na lateral: “Executamos serviços de pintura e reforma”.
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A casa-empresa era tão pobre que nem laje tinha. Fria, graças aos vãos que existiam entre o telhado e as paredes. O chão era daqueles avermelhados, de cimento queimado. Parecia desses casebres simples que vemos na roça, ou na beira de estradas. Havia três baldes distribuídos pelo cômodo, que imaginei estariam posicionados exatamente sob as goteiras que deveriam surgir abundantes em dias de chuva forte.
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Como eu supus logo de cara, o preço de um anúncio na revista era algo fora de propósito para eles, descartaram a possibilidade quando lhes falei o valor mínimo. Apesar de ter perdido a viagem (comercialmente falando), não sai de lá correndo, e acabamos engatando uma prosa boa e criando certa empatia. Afinal, somos todos labuteiros desta labuta que é a vida, não é?
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Quando eu já ia me levantando pra ir embora, a mulher anunciou: “Peraí que vou passar um café! O senhor toma?” – E eu: “Claro, adoro um cafezinho caseiro, mas, não me chame de senhor, pelo amor de Deus!” E assim o clima ficou ainda mais descontraído.
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Logo o cheirinho gostoso do café invadiu a casa e uma térmica chegou à sala, trazida numa bandeja, junto com três copos de requeijão. Para mostrar simpatia (o excesso é que foi o meu erro, logo se verá), fui logo me servindo. Enquanto entornava o líquido no copo, percebi, pela luz que o atravessava com incomum facilidade, que se tratava de um legítimo chá-fé. Tarde demais, porque eu já o tinha enchido pela metade com aquela água amarronzada. Quando perguntei pelo açúcar, ouvi: “Não precisa, não, já ta bem docinho, viu?”. Hummm... que perigo!
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E lá fui eu. Dei o tradicional assoprinho e quando pus a boca na borda (e meu nariz acabou aspirando lá dentro), senti aquele fedor de ovo que você sabe bem com o é. Fixei meus pensamentos em outra coisa e provei. Horrível! Além do cheiro nauseante, o café estava mais doce do que melado de cana. E a mulher me olhando, esperando aprovação. Me controlei para não fazer cara de nojo e menti, cometendo o segundo erro daquela manhã: “Nada como um cafezinho caseiro!”. E ela completou: “E bem docinho, que de amargo já chega a vida da gente, né?”. E eu sorri como uma besta, que nem imaginava que o pior ainda estava por vir.
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Para me ver livre de vez do suplício, em um arrojo de superação mental, prendi a respiração e virei, goela abaixo (terceiro grande erro). Assim que apoiei o copo na bandeja, como um herói que finca sua bandeira no chão do território conquistado, a dona sentenciou: “Ah, gostou mesmo, hein? Então não vai sair daqui sem tomar mais um tiquinho!”. E já foi enchendo meu copo novamente, até a borda. Tomei-o todo, sem regurgitar, com a graça e a misericórdia do meu bom Deus.
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Ao longo da vida, já enfrentei muitas dessas bizarras experiências gastronômicas, mas para contar todas seriam necessárias três crônicas como esta... Ah, lembrei-me de uma outra terrível! Vamos a ela:
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Quando eu era moleque, de uns 12 anos, fui fazer trabalho de escola na casa de um colega e acabei ficando pro jantar. A mãe dele anunciou que comeríamos estrogonofe de carne, e eu já fui logo abrindo a boca pra avisar que era aquele o meu prato predileto (dizem que não só os peixes, mas também os idiotas morrem pela boca). Sentamos todos à mesa: a mãe, o pai, a avó, ele, a irmã adolescente e eu, envergonhado no meio de uma família toda que eu não conhecia.
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Logo que levei a primeira garfada à boca, reparei que os pedaços de carne do estrogonofe eram duros como borrachas de calçar porta. Os primeiros, sem conseguir triturá-los, engoli quase inteiros. Na segunda garfada o sacrifício foi idêntico. Parecia não haver nenhum pedaço macio. À mesa todos conversavam animadamente, ninguém aparentava estar com o menor problema. Mandei nova garfada. Dessa vez, após chupar o molho e deglutir o arroz, restaram-me dois pedaços na boca, impossíveis, puro nervo. O que eu faria? Pior é que a mãe do amigo enchera meu prato e eu teria que comer tudo pra não fazer feio.
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Muitos pedaços fiz descer junto com goladas de guaraná, como se engolisse aspirinas gigantes, que pediam aquela manobra de travada da glote mais espichada de pescoço.
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Aliás, nem à faca aqueles estrogonofes do inferno se rendiam! Tentar cortá-los com a lâmina de serra era em vão, os dentes saltavam sobre as fibras e não as partia. Os pedaços maiores, impossíveis de serem engolidos inteiros, eu os forçava com meus potentes molares juvenis, imprimindo newtons e mais newtons de legítima pressão muscular, capaz de rasgar couro espesso e estraçalhar madeira, mas inócuos para os malditos nacos, que se contorciam, mas não cediam de jeito nenhum.
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No auge do sufoco, passei a escondê-los no guardanapo de tecido que tinha à disposição, ao lado do prato. Levava-o à boca, fingia que limpava os lábios e, com a ajuda da língua, transportava os pedaço cuidadosamente para dentro dele, voltando a colocá-lo sobre a mesa.
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A verdade é que o paladar geral estava muito bom: o tempero, o arroz, as batatas fritas, os champignons... Mas eu já pingava suor e ainda faltavam cerca de doze invencíveis tecos de estrogonervo a serem deglutidos. Com a valentia que a covardia acuada produz, ataquei nova garfada. Tudo de novo: mastigar e engolir as batatas, sugar o molho junto com o arroz e lutar ingloriamente para estraçalhar os brutais pedaços de carne, da espécie mais fibrosa que já experimentei na vida, aquela em que a trama de tendões é entrelaçada como numa cordoalha de feixes de nylon. Nada, não tinha jeito! Eram mesmo de aço as fibras daquele boi finado. Deve ter morrido contrariado, o desgraçado-filho-duma-vaca! E a minha tortura prosseguia e parecia não ter fim...
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Expelindo lágrimas dos olhos, engoli outros pedaços inteiros com a ajuda de meia garrafa de guaraná. Os que não consegui engolir, juntei aos outros tantos que já estavam socados no guardanapo, que já parecia estranhamente gordo ao lado do meu prato, dando muito na vista. Foi então que me ocorreu de fazer como os hamsters: armazenar as nervuras no fundo da boca, assim mais tarde eu poderia cuspir no lixo ou na privada. Boa! Lá fui eu. Em poucos minutos minhas bochechas estavam como as do Kiko, amigo do Chaves. Mas assim que todos se distraíram, num bote ligeiro, cuspi na palma da mão os nervos e os soquei rapidamente no bolso da calça.
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Finalmente, depois do que me pareceu serem oito horas de jantar, estava tudo acabado. Veio a sobremesa, que desceu como um bálsamo celestial pelo meu esôfago esfolado: sorvete de flocos. Em seguida, um salvo-conduto do chefe da casa liberou-nos da mesa; pedimos licença e voltamos ao quarto do meu amigo para terminarmos o tal trabalho.
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Um tempo depois, quando fui ao banheiro, descobri que todo o meu sacrifício fora em vão. Ouvi pela janela basculante que dava para a área, a empregada da família falar para a patroa, enquanto ambas dividiam a louça: “Xi, dona Fulana, acho que o rapazinho não gostou do estrogonofe, cuspiu tudo no guardanapo, vê só!”.
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Maus bocados passaram também os amigos Léo e Ana, numa noite em que resolveram se arriscar num restaurante coreano, dos tradicionais, no bairro da Liberdade. Desde a chegada, não entenderam bulhufas do que a garçonete tentava lhes explicar na língua nativa. Para poder comer, acabaram apontando no cardápio alguns misteriosos hieróglifos coreanos, dizendo: “Traga isto aqui... e isto também e mais isto...” – numa espécie de roleta russa gastronômica. Que coragem! Mas... uma grata surpresa! Os primeiros pratos vieram em menos de um minuto. Como são rápidos esses coreanos, pensaram. E eram sopas, missoshiros, uma cumbuca para cada um, iguaiszinhas às dos restaurantes japoneses, só que um pouco maiores. A Ana achou estranho o fato de aqueles missoshiros estarem frios, mas pensou que deveria ser tradição milenar, afinal estavam ali justamente para conhecê-la. De qualquer forma, num insight da mais pura percepção feminina, deixou que o Léo experimentasse primeiro.
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E lá foi o Léo, faminto. Lançou mão da cumbuca e, ao estilo japonês, mandou ver, virou no bico: glub, glub, glub, glub! Lambeu os beiços e mirou o infinito, os olhos semiserrados, quieto, meditando por um minuto e absorvendo as percepções. Em seguida explicou à Ana, como um gourmet que oferece à plebe ignara seu apurado tino: o tal missô seria uma espécie de mistura floral, uma sopinha de ervas aromáticas. Disse, inclusive, que pôde captar sutis notas de eucalipto e nuanças de jasmim. Por fim, esclareceu que o fato de ser fria, seria para não liberar em demasia os bálsamos aromáticos, o que poderia ser uma violência para olfatos e paladares mais sofisticados, como o seu.
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Em meio àquela aula de percepções transcendentais-aristotélicas, um susto: uma coreana velha, que parecia ser a dona do restaurante, saiu lá do fundo e veio na direção deles, nervosíssima, batendo o pé. Achegou-se à mesa e, severa, arrancou num safanão a cumbuca já vazia da mão do Léo. Vermelha e alterada, bradava coreanisses ininteligíveis e sacudia indignada a vazilha vazia no ar. Por um instante o Léo achou que ela daria com aquilo na sua cabeça.
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Injuriados com aquela grosseria, aqueles berros sem tradução, levantaram-se e foram embora na mesma hora, de cara feia, mas sem entenderem nada do que ocorrera. Acabaram não pagando pela sopa tomada. “Quem mandou ser mal-criada? Acabei tomando missoshiro coreano de graça!”, vangloriou-se o Léo, malandro, enquanto saía de mãos dadas com a Ana porta a fora.
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Meses depois vieram a descobrir que aqueles recipientes não continham missoshiros coreanos, mas lavanda, uma solução de água e produtos de limpeza que servem, tão somente, para lavar as pontas dos dedos à mesa, antes da refeição.
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A pior de todas foi a que aconteceu com meu amigo Marcos Ponsi. Enquanto eu escrevia estas mal traçadas, lembrei-me daquela divertida história (divertida só para quem a escuta, imagino) e resolvi contá-la aqui. O problema é que não me vinham os detalhes, então achei por bem pedir socorro a ele, por e-mail. A resposta que recebi do amigo é nada mais nada menos do que o causo inteiro, magistralmente relatado, tão bom que não vou cometer a indignidade de tentar reescrevê-lo. Aí vai, nas palavras do Marcão, o causo do rim com brók, para fechar a crônica desta semana.
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“Cesinha, o certo seria vocês irem em casa e comeríamos a famosa pizzinha, e então eu poderia relembrá-lo dos detalhes daquele nauseante episódio. De qualquer forma, vou fazer um breve relato abaixo.
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O fato ocorreu quando fomos, meu pai e eu, visitar uma empresa na França, mais precisamente em Marselha. Fomos convidados para um almoço e eu tive a brilhante ideia de pedir ao anfitrião que escolhesse um prato típico local para que eu provasse (achando que somaria iguarias francesas sem precedentes ao meu glossário culinário).
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O cidadão disse o nome do prato em francês, repetidas vezes (infelizmente não me lembro como se chamava), e nós fizemos cara de interrogação em todas elas. Começou então a indicar, usando seu próprio corpo (as costas, para ser mais preciso), qual o pedaço do bicho que nos seria servido. Já com vergonha de fazer o maldito repetir, meu pai, com seu vasto conhecimento de francês, garantiu-me que se trataria de lombo, já que o rapaz desenhava com o indicador e o polegar uma tira imaginária em sua própria região lombar.
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Quando chegaram os pratos (pediram apenas dois, uma pra mim e outro pro meu pai; os deles eram bem diferentes e muito mais suculentos), notei que algo estava errado, apesar de eu (ainda) não ter me dado por insatisfeito.
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O prato era composto pelo tal pedaço escuro de carne, da cor de um fígado, uma espécie de gomo asqueroso, com múltiplas secções, que lembrava um daqueles bifes recheados que são enrolados e presos com barbantes e vão ao forno, além das batatas fritas e uma porção de brócolis (brók, como dizia uma antiga empregada).
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Para saciar minha curiosidade, lancei um corte no meio do repugnante gomo para saber qual era seu recheio. Qual não foi minha surpresa ao ver que o bichão era recheado de sangue e urina. Um cheiro forte subiu ao meu nariz e, naquele momento, caiu a ficha e percebi que aquilo era um rim de boi, verdadeiramente mal-passado, beirando a crueza total. Ao ver aquele caldo infernal se espalhando pelo meu prato, em um movimento ninja que jamais serei capaz de reproduzir, calcei o prato com uma colher que estava à sua frente, produzindo um ângulo no qual a solução de mijo-sanguinolento não pudesse marolar livremente atingindo o que ainda poderia ser salvo do meu almoço.
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Sacrifiquei algumas batatas no processo, mas, como um castor nervoso, consegui represar o mijo até poder me acalmar e pensar no que faria com aquele saco de urina que jazia no meu prato.
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Carregando a bendita boa educação que meus pais me deram, entrei em estado de alfa e, calado e sereno como um monge hindu, degluti um a um os nacos do rim cru, sempre acompanhado por generosos pedaços de brók, e uma bela golada de vinho. Meu pai, que nem sempre pratica a boa educação que ensinou aos filhos, empurrou-os de lado alegando uma forte dor de garganta (que por sorte já estava reclamando para o pessoal desde o começo do dia).
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Bom, foi mais ou menos isto... espero que tenha dado pra você se lembrar. Agora estou indo ali vomitar e já volto. Abraços!”
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Cesar Cruz
Agosto 2009
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8 comentários:

Anônimo disse...

Sensacional, como sempre... passei por uma situação idêntica à sua com relação ao estrogonofe (preciso ver se não foi na mesma casa), só que adotei o esquema de "caçamba bucal" que esvaziava a cada uma das 12 vezes que fui ao banheiro naquele jantar (devo ter entupido a privada).
Foi um prazer participar em um de seus causos... e o convite da pizza está de pé.
Abraço do Marcão!

Anônimo disse...

Tá vendo, Cezinha? Depois esse cara dura do Marcos ainda tem coragem de reclamar da minha comida!

Sensacional! Estou chorando de rir (apesar de um pouco enjoada, é verdade!)

Estava com saudades dos contos.
Beijos

Marcela Ponsi

Wilson Lopes Santos disse...

Po, que merda, Cesar... fui ler isso bem na hora do almoço! O relato do pobre do Marcão ai, somado a foto do rim lá em cima, é de fazer perder o apetite até de um avestruz. Que nojo! Essa situação do estrogonofe já passei parecida, acho de verdade que estrogonofe é um prato que metem uns molhos cheirosos só pra esconder a carne ruim. E a gente que engula!

Arght pra vc! ops, quero dizer Abraço pra vc!
Wilson

Anônimo disse...

Ararara! Passei mal de rir com a do estrogonervo! Muito boa!
Essa do rim cru foi de matar, coitado do seu amigo.

bjo Marlene

Miguel Domingues disse...

Cesar, excelente este causo e os demais que li aqui. Gostei especialmente de Os olhos dos outros, das percepções que você pescou dentro do texto do R.Alves, e os paralelos que fez com sua vida, com os olhares sobre sua filha, etc.
Deste gostei da fluidez, do humor coloquial, leve, da casualidade dos ocorridos, muito bem escrito. O leitor começa a ler e acaba, sentindo vontade de mais um pouco. Não empanturra, entende?

Parabéns e um abraço
Miguel Domingues
Aclimação
SPaulo

Flávia Makários disse...

Cesinha!! dei muita risada..fiquei imaginando cada careta sua..rs
Pra completar me entra o Marcão com aquela história nojenta...

adorei!

beijos
Flávia

Anônimo disse...

travada na glote? estrogonofes do inferno? estrogonervo? mirar o infinito quieto? tira imaginária? Cesar, realiza, eu na loja, rindo que nem maluco, e se alguém entra? Anuncio a todos, se eu perder clientela por causa disso, a indenização será pedida em sua casa. Cara, foi uma das coisas mais divertidas que li na minha vida, muito bom mesmo.
Agora vamos aos fatos, também já passei muito por isso, principalmente quando realizava trabalho assistencial com visitas a multiplas casas, o café já fechava logo de cara, alegando que me fazia mal, o que é verdade, então não o aceitada, os acepipes e almoços, desenvolvi uma técnica que uso até hoje, infalível. Como ou coloco pouco no prato, alegando antes disso alguma coisa (que já havia comigo a pouco tempo ou alguma indisposição, o que é uma brutal mentira porque a fome é que nem falácia política, não tem fim), se esta ruim, digo estar satisfeito, se esta bom, digo que estava tão gostoso a ponto de mesmo já estar cheio ou indisposto, repetir, deixando os convivas satisfeitos. Simples né? Abraços a todos.... agora que um brókinho é uma delícia é né? mas ao caldo de xixi nauseante para... que eu quero descer.

xara
ipiranga

Emerson Aguirre disse...

César, já passei muitas vezes nessa vida por situações em que tive que esconder repugnantes restos de comida indigesta em guardanapos. Já até perdi a conta!

abraço!
Emerson