Treinamento de vendas


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Sábado cedinho a cidade é sempre gostosa. Especialmente naquela manhã, cuja combinação de frio e sol produzia um efeito delicioso. Eu tinha acabado de deixar minha mulher no trabalho e voltávamos para casa de carro, minha filha e eu, devagarzinho pela Washington Luiz, ouvindo rádio e conversando. Ali na altura da Moreira Guimarães, onde há uma alça que joga a gente para a Indianópolis, há uma concessionária Renault.
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- Filha, olha ali uma loja de carros, vamos dar uma espiada? – apontei.
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- Cau! cau! – animou-se ela.
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Eu precisava mesmo pesquisar preços para trocar de carro. Estacionei e desci com a Michele no colo. Avancei até a porta envidraçada, empurrei-a e ganhei a loja. Salão amplo, limpo e cheiroso.
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Ficamos aguardando que alguém viesse nos receber, mas ninguém apareceu. Um grupo de cerca de vinte funcionários uniformizados comiam, bebiam e conversavam ao redor de mesas encimadas por uma plaqueta onde se lia “atendimento ao cliente”. Ficou claro que nos viram, mas como ninguém se prontificou, resolvi me autoatender, e segui a seta que indicava a seção de seminovos.
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Havia uns quinze carros usados de diversas marcas ali. Pus a Michele no chão e a deixei correr, enquanto observava latarias, pneus e abria a porta de um por um para espiar o estado dos interiores. Gostei especialmente de um Clio Sedan, ano 2007, muito bem conservado.
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- Michele, vem aqui ver se gosta deste carro! Sua cadeirinha vai ficar linda dentro dele. – chamei-a, mas ela parecia mais interessada nuns panfletos que encontrou sobre uma mesa e que já tinha esparramado pelo chão.
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De repente uma garota saiu do grupo de funcionários e veio até mim. Antes que ela se aproximasse o suficiente, animado que estava, já fui me adiantando:
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- Bom dia, que bom que você veio me atender, moça! Qual o preço deste carro aqui?
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A tal moça não parecia tão entusiasmada com a minha presença quanto eu com a sua. Parou na minha frente com uma cara meio estranha e me fitou, calada, por um instante. Pensei que poderia estar tentando se lembrar do preço do veículo, até que sentenciou:
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- O senhor desculpe, mas não pode ficar aqui; a loja ainda está fechada.
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Surpreso, repliquei:
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- Engraçado, não me pareceu, pois a porta estava aberta e...
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- É que aos sábados só abrimos às nove horas, e ainda são oito e dez. – interrompeu-me, apontando para o relógio na parede. Depois continuou me olhando como quem olha para um intruso, esperando que ele tenha a fineza de se retirar por si só.
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- Poxa, mas há tanta gente aí! Será que um de vocês não pode verificar apenas o preço do carro? – implorei.
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- Agora não dá, senhor. Estamos tomando um cofibreiqui e vamos ter um treinamento de vendas em seguida.
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- Humm... um coffee brake... treinamento de vendas, entendo... Que bacana. Também sou vendedor, sabe? Posso te perguntar uma coisa?
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- Pode. – concordou, com nítida má-vontade.
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- O que vocês aprendem nesses treinamentos de vendas?
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- Aprendemos técnicas para vender mais e atender melhor o cliente.
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Ficamos olhando um para a cara do outro, imersos num constrangedor e significativo calar. Entretanto ela parecia não compreender a eloquencia de certos silêncios.
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- Volte mais tarde, poderemos atendê-lo depois das nove.
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- Oh, não, não, muito obrigado! Prefiro não atrapalhar mais.
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Peguei a Michele no colo e fui saindo, seguido pela moça que se postou atrás de mim como que para se certificar de que eu não iria me atrever a voltar.
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Atravessamos escoltados a turba barulhenta de vendedores, que comiam torradas, petit fours e bebiam seus cafés quentinhos e cheirosos. Ao nos verem passar, paralisaram por um instante. As bocas, constrangidas, suspenderam seu mastigar; as mãos, não tendo onde se esconder, permaneceram erguidas, imóveis no ar, segurando xícaras e fatias de bolo.
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Minha filha ao vê-los comer deve ter ficado com vontade, pois inclinou o corpo em direção à mesa, esticou o bracinho e gritou, rompendo a quietude:
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- Quééééu!
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- Calma, meu amor, vamos embora que papai compra lanchinho pra você em outro lugar. – sussurrei bem baixinho no ouvido dela.
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Como um bicão que foi descoberto na festa e está sendo retirado pela segurança, fui sendo acompanhado através dos intermináveis quilômetros que pareciam me separar da rua.
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Após cortar aquele espesso silêncio, abundante de olhares, terminamos, a Michele e eu, no estacionamento gelado, sem café quente nem calor humano, com a porta de vidro sendo fechada atrás de nós, desta vez a chave. Afinal, ainda não eram nove horas.
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Cesar Cruz
Agosto 2009
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9 comentários:

Gabriel Fernandes disse...

É a dura e estúpida realidade, meu amigo. Parece que não há relação perceptível entre o conteúdo dos cursos de treinamento e a entediante monotonia do dia-a-dia, ou a prosaica realidade do intrometido cliente. Nada pior que um vendedor profundamente treinado em marquetingue e públique releichom. Em geral são pró-ativos, possuem muita sinergia, seguem inúmeros paradigmas, são especializados em semiótica, resumindo, são um monte de merda.

Bem-vindo à ativa!
Abraço

Anônimo disse...

xara
ipiranga

caramba meu, pensei que ía ser o primeiro a comentar....ahaha. como se isso fosse muito importante né não gente? mas vamos lá, é bem verdade Cesar, hoje em dia o dito " o cliente tem toda razão " já elvis, também passo por isso, mas já tenho uma conduta formada, se não me dão atenção, simplesmente saio e muito, mas muito dificilmente mesmo retorno ao local, a não ser que mude o dono e eu tenha certeza disso e esteja com muita vontade ou necessidade de ir lá. abraços.

obs: claro! a propaganda contra depois é básica.

Anônimo disse...

Nossa! Como isso tudo é ridículo né?
Parace que nós fazemos o favor de comprar as coisas. Ninguém entende que se não comprarmos, eles não vendem e são mandados embora?

Ainda bem que vc é educado. hahaha

Beijos MARA RUZZA

Cássio Luiz disse...

Só pela capa do livro que voce pos para ilustrar o causo a gente ja ve o tipo de coisa que os vendedores são convidados a aprender! Agressividade, lutar, morder, esfolar, descarnar, escalpelar, distripar, moer...

QUEM?????? O pobre cliente claro!

Teve sorte Cesar! Poderiam ter comido voce e sua filha vivos, num ritual de canibalismo para dar forças espirituais a mais um dia de vendas triturantes.

Salve-se quem puder!!!

abração
Cássio
bairro do Ipiranga

Anônimo disse...

Pois é Cesão, não fazem mais vendedores como nós... loucos por cliente...rs! Abç.

Jaime-Floripa

Anônimo disse...

Quando vc diz ali da "eloquencia de certos silencios", vc diz tudo! Como vendedor que tambem sou, tenho que dizer que talvez esse seja o principal aprendizado: calar e aprender a ouvir, não só os clientes como também os silencios. Poe esse no jornal do bairro!

parabéns e abraços
Daniel
Aclimação

Anônimo disse...

Seu César! Convenhamos! Ainda não eram 9 horas e você foi atrapalhar o cófi da turma? Só faltou pedir uma bolachinha pra sua filha... que atrevimento!

saudações
Nilo (seu leitor do jornal, Cambuci -SPaulo)

Daniel Leopoldo disse...

Faaaala meufio !!!!!!!!!! Eae td bem com vc??? Cara ... gostei de + desse causo, muito bom!! Principalmente na parte... "estamos tomando um cofibreiqui" e outras tantas.

Gosto das coisas que vc escreve, a gante quase enxerga as cenas!!!

Cara td de bom p/ vc !!!! e vê se aparece diveizinquando na academia pra por uns musculos nesse esqueleto ai!!!

Abraço - Daniel F. Leopoldo

José Leite disse...

Escravos do relógio! Há-os em todos os lugares...