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Estacionei no posto para abastecer o carro. Entreguei a chave ao frentista e desci do veículo. Na bomba ao lado, havia um outro carro sendo abastecido. Aguardando também do lado de fora, um jovem de mais ou menos 20 anos acompanhava atento à rolagem de litros e valores avançar no marcador da bomba.Meus olhos passaram por ele e por uma fração de instante, achei que o conhecia. Era alto e magro, cabelos ruivos cacheados e sardas no rosto. Com uma calculadora sobre a palma da mão, realizava cálculos observando os valores; os olhos iam da maquininha pro visor e do visor pra maquininha. De repente desviou o olhar e o dirigiu a mim. Sua testa que vinha franzida pelo esforço do raciocínio foi se desanuviando gradualmente enquanto ele me fitava. Os olhos pregados em mim se arregalaram como se ele estivesse tendo uma visão; em seguida foram se espremendo gradualmente, assumindo aquela expressão típica de alguém que tenta se recordar de algo. Então abriu um sorriso e veio na minha direção, agora convicto:
- Sensei Cesar! – falou se aproximando, todo sorridente.
Sensei significa professor em japonês. É a forma como os alunos de karate se dirigem ao professor. E eu, que já fui sensei de karate, fui levado a rememorar rapidamente uma época situada entre 1989 e 1998, período no qual ganhei a vida dando aulas desta e de outras modalidades; em escolas, condomínios e academias.
Aquele jovem com aparência nórdica possivelmente teria sido um dos 800 alunos que tive ao longo daqueles 9 anos. O problema, é que somados os mais de 15 locais nos quais dei aulas, o giro enorme de alunos que iniciam e desistem, e considerando que há 10 ou 15 anos atrás ele era uma criança, ficaria difícil lembrar.
- Sou eu sensei, o Vitor! – falou entusiasmado já parado na minha frente com a mão estendida.
Apertei sua mão e sorri amarelo. Eu não estava conseguindo me lembrar quem era ele, mas estava certo de que conhecia aquele olhar. Comecei a ficar aflito e sem graça. Foi então que, percebendo minha cara de interrogação, ele falou uma palavra que fez com que a busca frenética que meu HD mental estava realizando por imagens, sons e memórias, fosse instantaneamente interrompida:
- Sou eu, o Chambinho.
Lá dentro do meu cérebro, um arquivo foi pinçado daquele carrossel enlouquecido que girava furiosamente buscando ligar o rosto sardento à minha frente, a bilhões de outras situações, cenas, diálogos, vozes e feições. Uma luz verde passou a piscar ao lado do arquivo selecionado: encontrado!
- Chambinho! – falei aliviado sacudindo sua mão. – Rapaz, que surpresa! Nem te reconheci, já está um homem, cara!
Percebi que ele ficou meio acabrunhado por eu ter gritado aquele prosaico apelido ali, bem no meio do posto de gasolina.
- Pois é sensei, quanto tempo! Como o senhor está?
- Pelo amor de Deus, não me chame de senhor e nem de sensei aqui. Vamos fazer um acordo: eu te chamo de Vitor e você me chama de Cesar, combinado?
Rimos e trocamos um abraço caloroso. Ficamos ali conversando até que o frentista nos pediu para tirarmos os carros já abastecidos de frente das bombas. Obedecemos e num canto do posto, engatamos um papo de quase 30 minutos antes de nos despedirmos.
Quando parti, fui dirigindo e lembrando como conheci o Chambinho e tudo o que havia ocorrido...
Numa ensolarada manhã de sábado, no verão de 1993, fui procurado na academia por um homem que vinha trazendo pela mão um garotinho incrivelmente ruivo e obeso, de uns 7 anos.
O pai me explicou que o menino estava muito acima do peso, e que vinha sendo alvo de gozações por parte dos amiguinhos na escola. A situação havia piorado bastante, pois estava no ar um comercial do iogurte Chambinho, da antiga Chambourcy, onde o protagonista da propaganda era um garoto absolutamente igual ao pequeno Vitor: bem gordinho, ruivo e com sardas em abundância. Se fossem irmãos gêmeos não seriam tão parecidos.
Expliquei ao pai, que também se chamava Vitor, que poderíamos sem dúvida ajudar bastante, mas dependeríamos da ajuda dele e de sua mulher, restringindo excessos de doces e de gordura na alimentação do menino e mantendo-o incentivado a não faltar às aulas na academia. Acordo firmado e menino matriculado.
Já no dia seguinte, o exótico Vitor, vulgo Chambinho, se tornou meu aluno nas aulas de karate. Logo começou a freqüentar a academia também pela manhã, espontaneamente. Vinha para andar na esteira e na bicicleta ergométrica, como forma de auxiliar no trabalho de queima de gordura.
Eu que o acompanhava de perto em todas as modalidades, passei a me surpreender com a força de vontade do pequeno ruivinho, coisa incomum em garotos pequenos, especialmente nos obesos.
Numa daquelas manhãs Chambinho me inquiriu:
- Sensei, o senhor pode trocar a bicicleta e a esteira por outra coisa? Não gosto de nenhuma das duas.
Pedido complicado, pois estes eram os 2 únicos exercícios 100% aeróbios e bons de fato para a queima rápida de toda aquela gordura.
- Chambinho, não tem jeito cara. Se você quiser emagrecer rápido, tem que fazer esteira e bicicleta, não há outra opção e...
- É que eu queria aprender a pular corda como o senhor!
Eu era mesmo um bom pulador de corda. Quando pulava, juntava gente para ver. Mas corda é uma atividade muito intensa e de difícil aprendizado, especialmente por crianças. Nunca imaginei aplicá-la no condicionamento de um garotinho obeso. Além do mais, como ensinar uma bolinha daquelas a pular corda, se ele mal conseguia coordenar os passos na esteira?
Então falei:
- Chambinho, pular corda não é fácil como parece, sabia?
Ele fez que sim com a cabeça olhando para o chão. Era um menino tímido e de poucas palavras.
- Mas se você quiser mesmo eu te ensino. Mas você tem que assumir um compromisso comigo de não desistir, combinado?
Os olhos dele se iluminaram.
- Vou pular que nem o senhor pula?
- Vai, mas vai levar tempo, eu já pulo há 10 anos, demorei pra ficar bom. Você vai ter persistência?
- Vou sim!
- É difícil, não vai desistir que nem fazem esses frouxos por aí?
- Juro que não!
E foi assim que eu passei a ensinar aquele gordinho ruivo bochechudo e repleto de sardas a pular corda. Na academia nenhum dos colegas acreditava que eu conseguiria.
Treinávamos todo o dia pela manhã. Só após 1 semana inteira é que ele passou a conseguir dar 3 saltos consecutivos sem enroscar os pés.
A tarefa parecia impossível. Mas na semana seguinte ele já estava pulando seguidamente por quase 20 segundos, mas ainda dando aqueles saltos muito altos e desgastantes, usando os 2 pés e fazendo um barulhão danado no chão.
Mas mesmo com todas as dificuldades, todas as manhãs estávamos lá, eu e ele, impávidos.
- Chambinho, você precisa sair menos do chão...
- Chambinho, eleve os pés apenas o suficiente para a corda passar...
- Chambinho, não dobre os joelhos...
- Chambinho, só os punhos giram...
- Chambinho, descontraia os ombros...
E assim foi. Dia após dia, mês após mês. Surpreendentemente, ele começou de fato a aprender. Em determinado momento não parecia mais um garotinho pulando corda, parecia um adulto, um atleta.
Eu já não precisava ficar tão grudado no pé dele, passei a deixá-lo desenvolver sozinho. Ele já sabia onde teria que corrigir e estava começando a pegar gosto pela coisa. O resto era treino. Discutíamos detalhes técnicos e ajustes finos dia sim dia não, mas ele estava lá, diligente, todo o dia.
O tempo foi passando. Alunos começavam e paravam constantemente, uma rotina normal no mundo das academias. Adultos, jovens e crianças, todos desistem; em geral muito facilmente. Como é rara a virtude da perseverança! A academia nos ensina isso, em especial nas modalidades individuais e mais solitárias. Mas para surpresa de todos, Chambinho continuava firme e forte.
Um ano havia se passado. Ele havia espichado e emagrecido significativamente. Praticava o karate as terças e quintas de noite e pela manhã fazia corda por cerca de 1 hora.
Era engraçado ver a cara das pessoas vendo o Chambinho pular velozmente com sua corda de couro que havia ganhado de aniversário. Parecia um pugilista profissional. Era de fato estranho um gorducho ruivinho de 8 anos pulando a ponto de não se conseguir ver a corda girar ao seu redor, os pés se alternando rapidamente e saindo do chão apenas os centímetros necessários para a corda passar, e aquele barulho seco marcando o ritmo no chão: tchec, tchec, tchec, tchec, tchec, tchec, tchec. Era tão esquisito como ver um cachorro falando! Simplesmente surreal.
Com o tempo ensinei-lhe o pulo cruzado, os punhos unidos alternando os lados, o pulo duplo com duas passadas no ar e outras técnicas de exibição. Chambinho se tornou uma máquina de pular corda, passou a pular por prazer e em 2 anos já pulava melhor que eu, sem sombra de dúvida!
O Vitor pai vinha buscá-lo e ficávamos proseando, estava orgulhoso do filho! Na escola as brincadeiras haviam parado. Contou-me que um dia Chambinho levou sua corda pra escola e na hora do recreio, sem dizer uma palavra, tirou-a da mochila e fez uma exibição silenciosa no meio do pátio. Foi tão bonito que abriram uma roda pra ver. Nem os bedéis tiveram coragem de interrompê-lo. Por fim ele parou, dobrou a corda, guardou-a na mochila e saiu caminhando com sua expressão séria, seguido dos olhares de admiração e espanto de todos. Era a sua forra pelas humilhações que havia sofrido. Bem ao seu estilo: sem palavras.
O pai me relatou que em casa, era Deus no céu e o professor Cesar na terra. O garoto só falava em mim, eu havia me tornado seu herói.
No dia dos professores e no meu aniversário me trazia presentes. Numa certa manhã, ele veio a mim e esticou a mão em silêncio. Eram 2 ingressos para uma peça de teatro que a rede de lanchonetes Arby’s, em que o pai trabalhava, estava apoiando. Fui assistir com minha namorada da época. Foi no teatro de um shopping e após o espetáculo, fomos convidados a saborear lanches de rosbife, refrigerantes e batatas na loja do Arby’s na praça de alimentação ao lado!
No dia seguinte contei a ele como a minha namorada havia ficado feliz e como os lanches eram gostosos. Ele pulava silenciosa e ritmadamente sua corda de frente pro espelho enquanto eu falava. Parecia concentrado. Por fim agradeci o presente, ele não disse nada. Era mesmo um menino quieto... De alguma forma havíamos nos tornado amigos, amigos que juntos, desfrutavam em silêncio, o esforço e a dedicação em prol de um objetivo. Apesar da diferença de idade, havia uma cumplicidade entre nós. Uma cumplicidade que nunca precisou ser combinada em palavras. Ela simplesmente havia surgido, como um cogumelo surge num tronco de árvore.
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Uma noite, após a aula de karate da turma de adultos, o Vitor pai apareceu na academia. Não era o dia da turma infantil, Chambinho não estava com ele. Estranhei. Fechei a academia e saímos juntos ganhando a rua. Ele me convidou para uma cerveja na padaria, queria conversar comigo. Fui receoso. Será que havia acontecido algo? Será que ele e a mulher estavam chateados com algo que fiz?
Sentamos no balcão e dividimos uma latinha. Vitor me contou que a rede Arby’s estava pensando em sair do Brasil e já começara a demitir pessoal e a fechar lojas. Ele havia sido cortado. Dentro de poucos meses teria que partir de São Paulo com a família. Iriam morar no sul, na casa de parentes. Queria me avisar que o menino não viria mais à academia a partir daquele momento, pois a contenção de despesas domésticas era uma necessidade imediata.
Protestei dizendo que eu fazia questão que o menino prosseguisse treinando mesmo sem pagar. Ele não aceitou de forma alguma. Usei todos os meus argumentos, falei que não era por ele, mas sim pelo menino, por mim etc... Não houve jeito de convencê-lo. Vitor era um tipo sério e de poucos sorrisos, descendente de escandinavos, era duro como um viking, irredutível. O menino tinha bem a quem puxar.
Chambinho não veio mais à academia desde então. Fiquei mal com aquilo. Na semana seguinte fui na casa deles numa noite. Fui convidado para entrar e jantar. Enquanto jantávamos na cozinha, ele me olhava de soslaio, tímido e quieto do outro lado da mesa. Havíamos desenvolvido um entendimento no olhar. Ele sabia por que eu estava lá.
Após o jantar a mãe passou um café e toquei no assunto com os pais. Chambinho via TV na sala, possivelmente ouvindo tudo.
Sai daquela casa minutos depois, vencido. Não houve jeito.
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Ainda vi o Chambinho mais uma vez. Era um domingo à tarde e ele ia no carro com a mãe. Eu estava a pé na rua, ele me viu e acenou. Não sorriu, parecia triste. Ficou me olhando até o carro desaparecer.
Foi a última vez que o vi. Tempos depois soube que ele e a família estavam bem, morando em Santa Catarina.
Um homem se aproximou de nós e disse que teríamos que tirar os carros dali. Pedimos mais um minuto. Foi o tempo dele me contar que o pai havia tido um derrame e estava parcialmente paralisado desde então. Pai e mãe estavam vivendo de uma pequena aposentadoria por invalidez que recebiam da empresa que o Vitor pai trabalhara nos últimos anos; mas apesar de tudo, estavam bem. Contou-me que estava de passagem pela cidade a trabalho, havia casado e vindo morar no interior de São Paulo, onde a sede da empresa fabricante de bombas para lavoura, na qual ele trabalhava como estagiário, estava estabelecida. No final deste ano se formará em engenharia agrônoma. Disse-me ainda que já tem um filhinho de 1 ano e que assim que o garoto ficar maiorzinho, vai ensiná-lo duas coisas: a pular corda, e a não desistir fácil das coisas, assim como eu o ensinei.
Partimos cada um no seu carro. Ainda deu tempo dele acenar e gritar:
- Sensei! Continuo pulando corda todo o dia!
Cesar Cruz
Set/ 2007
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Um comentário:
Oi Cesar,
Essa é muito boa. Emociona mesmo...
A maneira que você conta a história é muito envolvente e sempre tem uma surpresa...
Nem preciso dizer mais nada...
Beijos, Martha
29.9.07
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