Tapioca


Tapioca - sf. 1 Fécula da raiz da mandioca reduzida a grumos. 2 Espécie de beiju, feito de goma de mandioca meio seca, com uma porção de coco ralado por cima, coberto com uma camada fina da mesma goma (...). (Michaelis)

Este conto integra o livro O Homem Suprimido, Scortecci 2010.
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A dona estava em pé em frente ao leito, era bonita e usava vestido. Como a Gioconda, sorria suavemente para o homem, de forma quase imperceptível. Seu perfume o agradava e enchia seu coração de certa esperança. Ele já nem sabia mais há quanto tempo estava naquele leito. Sim, leito, pois cama, como as que conheceu ao longo da vida, eram bem diferentes. Não eram tão altas, nem tão moles. De tanto tempo sem provar uma já nem mais conseguia recordar as suas sensações. Um leito é diferente de uma cama. É ligado a aparelhos, tem manivelas e aquele abominável número gravado numa plaqueta metálica rebitada no corpo do móvel, que com o tempo passa a ser o número do ser humano que habita o leito. Os lençóis que se usam nele têm um cheiro misto de alvejante e escaldamento a alta temperatura. Não há germe que resista. Esses leitos, cujas execráveis rodas permitem que sejam levados para qualquer canto do complexo – até para o necrotério, no segundo subsolo, quando não houver mais jeito –, são mesmo muito diferentes das camas. De tudo isso o homem sabia, tivera tempo para refletir. O que mais se tinha ali era tempo. Estava mesmo no lugar certo; afinal, o leito é mesmo o lugar onde um homem deve morrer, como diz a expressão.

Lá embaixo, na rua, mais um ônibus partiu do ponto, lotado de gente. O motor roncou forte para impulsioná-lo a sair do lugar, fazendo subir ao quarto uma sonoridade e odor desagradáveis. Do segundo andar o homem podia ouvir bem esses ruídos urbanos que pareciam existir apenas para não deixá-lo esquecer que a vida prossegue em sua toada incansável e distante, vibrante e promissora, apenas para quem é jovem e saudável e pode enfrentá-la. Aos moribundos, alijados das alegrias do viver, só o que resta é aguardar a morte. Aos que estão com a sobrevida decretada, o que lhes oferecem é um leito numerado e a lassidão dos dias que se sucedem morosamente, além de seus próprios pensamentos e recordações, para que neles imirjam e chafurdem, minuto a minuto, hora a hora, dia a dia, até que não aguentem mais.

Foi há menos de um ano que ouviu pela primeira vez a expressão ser atribuída a ele. O médico quis falar com suas filhas para comunicar-lhes que o pai delas entrara em sobrevida. Que diabos!, pensou na ocasião, um homem nasce, cresce, se casa, tem filhos e um belo dia, quando ainda acha que tem muita lenha para queimar, um médico qualquer, que usava calças curtas ainda outro dia, surge para dizer que ele agora não terá mais uma vida, mas uma sobrevida. Seja lá o que isso queira dizer. A bem da verdade, todos estão em sobrevida, pensou ele, quase para se consolar, após alguns dias de meditação no leito. O homem não conhece o seu dia, como diz no Eclesiastes. Nenhum homem.

E foi ali, naquele leito, que adquiriu outra maneira de vê-la. Agora ele a via bela e atraente, de meia-idade, elegante em seu longo vestido florido, óculos de aros grossos, cabelos negros soltos nos ombros, perfume floral. Ele a tinha visto uma única vez, em pé, bem à sua frente. Ele abrira os olhos após um cochilo numa tarde nublada e fria, e ela estava lá, mirando-o. Com a vista embaciada e um fio de voz, perguntou quem era ela. A mulher apenas sorriu capciosamente e se esgueirou para trás do biombo, aquele utensílio móvel tri-partido usado para encobrir a visão, de maneira a não permitir que ninguém assista a degradante cena de um homem tendo suas fraldas trocadas, seu corpo flácido lavado, parte a parte, sobre uma bacia metálica, pelas mãos hábeis de duas enfermeiras desinteressadas e alheias. Enfermeiras que nunca são as mesmas, que, enquanto fazem seu serviço como um mecânico que mexe num carro, conversam entre si por cima do doente, falam de cabelos, maridos, vizinhas, salários... Em meio às suas conversas, algumas vezes se dirigem indiferentes ao doente, sem ao menos o olhar, com vocativos infantilizantes: levanta a perninha!, vira o bracinho, assim, isso mesmo! Não o deixam esquecer que seu tempo já se expirou, que ele é, para todos ali, apenas um número, um leito ocupado. No dia em que ele descer para o segundo subsolo, dirão tão somente: vagou o leito 386, troquem os lençóis sujos!

A filha mais nova tinha dito ao homem que a tal mulher talvez fosse uma pessoa do hospital ou uma visita que tivesse entrado em quarto errado, por engano, ou ainda uma ilusão, fruto dos efeitos colaterais do uso de corticóides. Disse aquilo e já logo desconversou, mostrando de forma quase imperceptível um manejo de canto de lábios e um olhar de lado, expressões para ele muito conhecidas, que significavam em Mariângela, descrédito e dúvida. Um pai conhece uma filha. Não insistiu mais. Já bastava a ele tanta humilhação: as escaras nas costas e nádegas, as trocas de fraldas, o corpo macerado, os médicos que mal conseguiam dissimular sua constante impaciência, as enfermeiras que o viravam e reviravam como quem movimenta caixas num estoque; as filhas e os genros que fingiam interesse, mas faziam visitas rápidas, sempre cheios de olhos nos relógios. Estavam todos esperando, quase torcendo por sua morte, para se verem livres daquela obrigação desagradável. Ele sabia disso. Liberado o leito 386, graças a Deus! Liberada a venda dos imóveis, aleluia! Liberados das visitas ao velho, arre!

Nos últimos dias, quando era acordado por qualquer ruído, abria os olhos, afoito. Esperava pela dona. Ansiava pelo seu retorno. Sabia que ela voltaria, sabia que ela lhe restituiria a dignidade perdida. Era um saber diferente, aquele, sem a ciência intelectual do conhecimento. Pura percepção intrínseca. Ele simplesmente sabia, e já a desejava mais do que às visitas piedosas de suas meninas crescidas, sempre tão atarefadas e exasperadas com suas casas, trabalhos, maridos. Desejava a dona do vestido florido como uma mulher que deseja seu amante proibido, como um forçado deseja a liberdade, como a mãe deseja o filho. Lembrou-se de como, durante sua vida toda, teve receio de um acidente, uma doença sorrateira, uma bala perdida, algo que de repente o tirasse da vida, a vida que ele tanto gostava de viver. Lembrou-se de uma máxima, que nunca soube o nome do autor, mas que era agora para ele tão exata, tão perfeita: o ruim é o chamado bom quando sucede o pior. É isso. Agora ele a queria o quanto antes, queria a dona bela do vestido florido.

Acordou com um tilintar metálico. Noite. Apenas a luz dos aparelhos e da saleta contígua. Era uma nova enfermeira a mexer nos equipamentos atrás dele. Gorda, negra. Sorriu para ele um gradeado de dentes brancos e sinceros. Até o cumprimentou com um bom-dia, suave. Deve estar para amanhecer, pensou. Ela ajustou os aparelhos, ajeitou as várias agulhas embutidas na pele sobre as falanges de sua mão direita, mexeu na sonda abdominal, no saco de colostomia, aplicou um peteleco na garrafinha de soro. Ele voltou a dormir antes de vê-la partir.

Foi acordado tempos depois, já de dia, por um uivo alongado, vindo da rua. Aquele uivo lhe era familiar, substituía, aos domingos, o ruído cansativo e triste dos ônibus e dos carros apressados. O grito rasgando o silêncio da preguiçosa manhã dominical o levou de volta à sua infância no interior, às ruas de terra, o pai trabalhando na cerca da casa, os irmãos correndo atrás das galinhas, a carroça do leiteiro puxada a cavalo chegando, bem cedo, para encher as garrafas da mãe. Novo grito, longo, macio, saudoso. Sentiu uma nostalgia gostosa e melancólica. Súbito, percebeu que em pé ao seu lado estava a dona; quase se assustou. Ela usava o mesmo vestido florido e os mesmos óculos de aros grossos que usara naquele dia. Mariângela estaria certa? Seria uma alucinação provocada pelos remédios? Podia sentir o seu perfume de flor, assim como podia sentir o cheiro de alvejante do lençol. Ela sorriu para ele, desta vez um sorriso maior, com dentes meigos e pequenos à mostra. O ruim é o chamado bom quando sucede o pior. Agora ele ajudava o pai a pintar a cerca, os pés descalços metidos na lama. Chovera na noite anterior, o barro ficara fofo e grudento, mas o sol forte das nove horas já esquentava as poças e começava a elevar um cheiro doce da terra molhada. A dona passou a mão em seu rosto, carinhosamente. O grito se repetiu lá embaixo, pela última vez, para não deixá-lo esquecer que tudo continuaria a se mover no mundo à revelia de sua partida.

– Tapióóca!, olha a tapióóóóca!


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Cesar Cruz
Fevereiro 2010
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Imagem: Obra de Frida Kahlo (1907-1954), intitulada: "Hospital Henry Ford", ou "Cama Voadora" (1932). Óleo sobre metal 77,5 x 96,5. Coleção Fundação Dolores Olmedo (México).
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7 comentários:

Marcus Ianoni disse...

Cesar, não é de hoje que acompanho seu trabalho, você sabe, já conversamos bastante a respeito na academia. Não comento aqui por pura falta de tempo, mesmo porque costumava te encontrar mais vezes, então falávamos pessoalmente.

Gosto das crônicas que escreve, mas os contos são obras de outra envergadura, sem minimizar as crônicas, obviamente. É que uma crônica é um relato muito leve e digerível, que se supõe que seja verídico, acontecido com o próprio escritor. Geralmente traz aquela carga de humor, irreverência, ironia, que você aplica tão bem. Por todos esses motivos a crônica é mais atraente para o leitor comum.

O conto é outra coisa. Ficção, segue por caminhos tortuosos, oblíquos, leva e traz o leitor do passado para o presente, mergulha fundo no personagem, revira suas tripas, revela sofrimentos, faz paralelos sutis. Pede atenção extrema. Tudo isso faz com que seja mais difícil se apreciar um conto a uma crônica.

Como professor universitário, provo o que digo usando seu próprio blog: observe o número de comentários que você costuma receber nas crônicas e compare ao número que recebe nos contos. Verá que o conto é pouco lido, pouco compreendido, até mesmo, pouco apreciado pelo leitor superficial, mal treinado e desatento.

Convido-o para que continue a escrevê-los. Tenho visto estilo e personalidade nestas suas ficções. Pequenos mergulhos no mundo de outras pessoas. Este aqui, Tapioca, esta sensível e profundo. Me senti no lugar deste homem. Senti o seu vazio, o seu desejo de morrer e, até mesmo, o cheiro do diesel do coletivo, vindo lá na rua. Olha a tapioca!

Parabéns e um forte abraço.
Marcus Ianoni

Pedro Luso de Carvalho disse...

Amigo Cesar,

Muito bom o seu conto (prendeu-me pela narrativa muito bem constuida e pela história em si, que é muito boa, pela ambientação e pelo ralismo).

Grande abraço,
Pedro.

Anônimo disse...

César
Quem ler este conto sentirá identificação imediata. Eu senti. Quem já não teve um parente, um pai, um avô, ou um ancião da família num situação dessas? Quem ler este conto sentirá remorsos, César! E quem já não fez isso que essas filhas e genros fizeram com ele? Quem já se pôs no lugar de um velho nas últimas, hospitalizado? Quem? Esse conto nos faz sofrer. Esse conto ME FEZ sofrer. Você conseguiu fazer o leitor viver o fim vazio, solitário e triste de um velho a espera da morte. Serei eu ou você um dia?

abraços,
Roberto Rezende
Cambuci, Capital

Natália Cassiano disse...

Cézar Cruz

Senti uma espécie de angústia ao ler seu conto, ainda a sinto enquanto comento. "A bem da verdade é que todos estão em sobrevida, pensou ele"

Fui jovem acolhedora em um hospital da minha cidade. Trabalhei na clínica médica. Diariamente via pacientes entrarem e sair. Nem todos os que saíam voltavam para suas casas e os corpos percorriam o hospital até o necrotério. Me sentia mal por saber que aquela velhinha simpática do último quarto não iria mais assistir televisão como quem vê uma caixa mágica e sorrir ao usar o telefone dizendo que não entende como "um treco daqueles pode falar" ou saber que aquele senhor que fumava encondido e falava que não tinha mais nada a perder mesmo, não teve seu único desejo antendido, morreu sem rever uma das filhas.

Me sentia péssima quando sabia da morte de alguém. O pessoal da enfermaria dizia "A gente se acostuma com o tempo".

A convivência fica mêcanica mesmo, automática. Acho que fazem isso para não se apegar.

Uma médica me disse que faz o seu melhor para prolongar e trazer qualidade de vida aos seus pacientes. Mas ela é limitada, trata apenas da doença. E mais que a morte, o que lhe dói é vê-los perder o gosto pela vida.

Quem sabe a expansão de projetos como os JA, doutores da alegria e de integração das famílias amenizem o sofrimento de quem está nos leitos.

Seu conto, assim como o hospital me fez imaginar a situação de quem vive na espera da morte. Realmente, não sei o que sentiria.

Parabéns pelo conto

Deva

Tais Luso de Carvalho disse...

César: mas que conto mais real! A figura da morte, agora tão desejada; a vida fora, vivida com tanta despreocupação, e a vida no hospital revelam um contraste de sentimentos incrível. Os filhos e genros preocupados com seus afazeres, ansiosos para que suas vidas voltem ao normal... As enfermeiras, já imunizadas pela rotina, mostram a indiferença e vêem apenas um número como na realidade seremos um dia. A rotina traça o perfil gélido de todos os hospitais, sem exceção. E é isso aí, amigo: nascemos, crescemos e morreremos como jamais imaginaríamos. Eu já presenciei isso várias vezes, e contaste nada mais do que a pura realidade, infelizmente o ser humano é assim. Parabéns, acho que foi o melhor que li de ti. Esse me tocou, justamente porque vi cenas semelhantes. Várias, inúmeras.E continuarei a vê-las.

Beijos
Tais luso

Anônimo disse...

Cruz,

Odiei seu conto, por isso ele é tão bom..., faz a gente sentir o que sente o velho...muito bem escrito, mesmo trazendo sensações desconfortáveis, te leva até o fim.
Realmente , outro nível de rabisco.
Parabéns.

Baxo

Anônimo disse...

fala Sr. Cesar, sempre com seus "solilóquios" geniais, continue assim pra que nos sirvamos deles, abraços do distante mas não menos amigo

xara
ipiranga